10.5.06

Procura da Poesia


...Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros.
Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentradano espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?...

Carlos Drummond


escute:

http://www.memoriaviva.digi.com.br/drummond/poema025.htm

9.5.06

Pra Parecer Sonho

Pra parecer sonho, em primeiro lugar, é bom que ande em lugares que não te agradam, entre pessoas que não conhece. Só com essa ferramenta, que eu assumo ser meio melodramática, é que o sonho sai "redondo".

Por exemplo, agora: frio lá fora, o parafuso solto do banco do ônibus martelando no pensamento, ajudado por um forró da pior qualidade. É agora que sonho (quando você dorme não escolhe, às vezes nem lembra).

Até eu chegar em casa, pelos vinte minutos que isso deve durar, vou comigo ilustrar uma casinha no alto da colina. Uma casa que passarinho canta de dia, cigarra de noite, cujo terreno preencho como se dela fosse um velho amigo.

O aluguel foi uma pechincha, e no ônibus eu rio sozinho por isso. A mulher que mais gosto está a caminho. Sempre achei que era do perfume dela que eu gostava, mas o cheiro bom vinha do pescoço, eternamente. Ela não tem rosto, está de busa e cachecol, com os cabelos soltos ao pouco vento que bate.

"Que linda!" - ela adora a casinha.

Concordo com um sorriso satisfeito e a convido pra sentar lá fora. Sentamos num banco de madeira, preso por correntes à uma estrutura que o permite balançar. Ela acha graça daquele "vai-e-vem" e um pouco mais tarde, depois dos passarinhos terem terminado e antes das cigarras começarem a cantar, nos beijamos num silêncio pacífico e frio.

De fora se escutam latidos de cachorros que, apesar de vira-latas, são muito bonitos e todos correm pela varanda tirando barulho da casa pré-fabricada. Ela é toda de madeira, e talvez por isso o próprio contrato aconselhava: "-Por favor, evitar entrar na casa calçado, especialmente na salinha de TV." Os proprietários devem ter lido várias revistas de decoração antes de projetarem a salinha, que tinha (claro) uma TV no canto, mais janelas que o resto da casa e várias almofadas de cores e tecidos diferentes. Eu que mando no sonho, por isso incluí nesse cômodo uma jarra de suco de abacaxi com hortelã e um pote de pipoca de panela que dividem um criado mudo com os controles remotos.

Assistimos ao filme. Talvez o "assistimos" passado também tivesse que estar entre parênteses, já que o filme em si ficava pouco interessante quando se olhava pro lado e via a mulher que você mais gostava. Eu, pelo menos, não prestei muita atenção, mas assistindo ao final entendi quase tudo. Era um filme de amor.

Com a TV já desligada, começo mais uma vez aquele cortejo de ir devagar, encostanto com o final dos dedos o começo do corpo dela, tudo aquilo que a gente pensa copiar do filme, sendo que no fundo ele é quem copia da gente (ele imita a gente, a gente ele, nada muda).

De repente, uma barulheira vem de fora, balançando as árvores e fazendo voar algumas corujas. Um carro em alta velocidade passa pela estrada, entra pelo portão e freia bruscamente ao lado da porta que dá pra varanda. Os cachorros saem raivosos, latem feito loucos mas são logo espantados pela senhora de cabelos loiros que sai do carro e já abre a porta da casa. Entra na salinha com dificuldade, com sapato e tudo, espalhando as almofadas e dizendo firme:

- Com licença, rapaz.

- Desculpe senhora, mas não me lembro de term...

- Meu filho, este lugar é pra idoso. Por favor.

Abro o olho.


Thiago Cunha