31.8.05

O Opiário



É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente...

...Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso.
Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?...

(Fernando Pessoa)

Tadinha da Zuleide

5:30 da tarde, Zuleide entra no ônibus sem nenhuma sacola. Era uma das únicas que não carregava nada, bolsa, sacola, pacote, pochete, carteira, nada, excetuando o cartão vale-transporte que tinha acabado de conseguir e que mostrava com orgulho ao cobrador: “-Tem que encostar ele aqui ó”. Zuleide, sem perder a compostura, encostou o cartão junto à máquina até escutar um apito. Pronto, que susto, saldo: 45 reais. Ela tinha esperado meses para isso e agora que estava de folga pôde fazê-lo, juntar todo o dinheirinho guardado e encher aquele cartão de créditos. 45 reais, parecia um sonho. Aquele era o segundo ônibus de Zuleide para casa e por isso, antes dos 45 reais piscarem no visor, três zeros a assustaram: 0,00. “Mas que engraçado”. Por um instante Zuleide esquecera de todas as explicações da atendente e das suas horas de tolerância entre um ônibus e outro, passando os próximos minutos gozando da sorte de terem esquecido de cobrar sua viagem.
Zuleide era moça de baixa estatura, de quadril largo porém visivelmente mal nutrida. Comia pastel e bebia cerveja quase todos os dias, talvez uma explicação para sua mulatice desbotada, impossível de definir se as manchas eram as partes escuras ou claras, tamanha imperfeição e variedade das cores. As dobras do pescoço, por exemplo, eram escuras, enquanto sua palma da mão era clara, estendendo sua tonalidade pelo antebraço até tornar-se bege na altura do cotovelo. Sua face e ombros, talvez ainda pelo pastel e a cerveja, eram cobertos de pintas. Algumas protuberantes, gordas pintas penduradas em sua pele por minúsculos apêndices, como se dela estivessem se desgrudando.
O ônibus naquele horário estava lotado, mas Zuleide já estava acostumada, ainda mais hoje, sem nenhuma sacola e toda cheia de si mesma. Gostava dos assentos do fundo, onde dava para sentir cócegas na barriga, e não demorou nem um minuto para abrir caminho entre todas as cinturas, coxas, peitos e bundas, e chegar até lá. Durante o curto percurso parecia não ser a mesma pessoa, quem via de fora nunca iria notar – seus olhos eram os mesmos, sua expressão triste também -, mas por dentro daquele corpo diminuto (daquela cabeça desproporcionadamente grande) ocorria uma explosão, figurada apenas pelos movimentos curtos de seus membros ossosos. Seu semblante permanecia intacto, Zuleide mantinha sua cara de invisível, mesmo com toda a nefasta alegria que sentia e as risadinhas presas entre os pensamentos.
“ Quer sentar?”- um homem gordo suando às bicas a perguntou. Ela, depois de jogar um olhar para todos os que pudessem ter escutado tão oportuna oferta, disse sim. Uma mulher sentada no banco ao lado indignou-se e parou o assunto religioso com a amiga para ressaltar que o coitado do homem é que deveria estar sentado, mas nisso ele já estava de pé e Zuleide quase toda acomodada.
A doméstica então aprumou-se no plástico duro e reparou muito simpaticamente no homem que havia lhe cedido o lugar, até que ele desceu, e seu entretenimento passou a ser o de apreciar suas formas crescerem no espelho olho-de-peixe. Tadinha da Zuleide...

(Thiago Cunha)

A Razão de Se Viver

A Razão de ser viver
Habita o crepúsculo
Quando quase nos damos por certos

Até que anoitece
Alguém interrompe o silêncio
Tocando o sino da porta

A novela começa
Ao se deitar, tarde da madrugada
É presenteado com um sonho

Desponta na janela a claridade de outra manhã
À tarde brota a pergunta
As plantas do quintal não param de crescer
Seus filhos são os amores de sua vida
E é noite de novo.

(Thiago Cunha)

Os Ombros Suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundoe ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond)

O Tempo Vai Passar

O tempo vai passar rápido como sempre fez
As noites cairão sincronizadas ao acender de abajures e televisores
E de repente será dia, haverá fumaça, e o acordar precederá o cansaço

As pessoas vão sair de casa, andar na rua, olhar uma para as outras de vez em vez
Apanharão o metrô, lotado
Entre apitos e “entre e sai” de mais pessoas, elaborarão sonhos dos mais fantásticos
Das coisas que já viram na vida

Pensarão no ser amado, mesmo que ele não corresponda ou até exista para compartilhar tal sentimento
E imaginarão que ele alimenta um pequeno animal, afável e peludo
Ou qualquer outra imagem que invoque ternura em sua concepção

Não quero restringir as paisagens apaixonáveis, só tenho essa idéia muito atrelada à admiração
Também perdoem-me os solitários resolvidos, céticos libidinosos e mutilados do amor
Mas cismo em dizer e acreditar que, com tantas pessoas imperfeitas, tanta vida e fantasia
Nada haverá de ser totalmente ridículo, ou tão sublime e lógico que transcenda a paixão

Que nos torne ilesos às coincidências, às fraquezas (até as da carne, por que não?)
E depois de entregues a elas, nos prive do ciúme, insegurança, tentação

E quando você cede, quando acontece, é ponderar
Muitas vezes, depois disso, você talvez passe a sonhar menos no metrô
E seu devaneio flutue vazio entre canos e cimento detrás da janela
Porque você, depois de tanto tempo, de tanta gente, encontrou o seu amor

E não é vazio, nem ruim
Apenas é, isento de esperança e imaginação
Pronto pra ser explorado, passível de ser largado de lado
Pra que você sonhe novamente

O tempo vai passar
Existe muita gente, todas apaixonáveis
E o tempo vai passar.


(Thiago Cunha)

O Tempo Ganha de Mim

O tempo ganha de mim, minuto a minuto. Os sensíveis toques dos ponteiros, bruscas mudanças de luzes e números no visor digital, nenhum deles me passa desapercebido, no entanto todos passam e, com inefável rapidez, o tempo me supera.
Se me pedissem descrição ou devaneio mais plausível, diria que é como embriaguez, que começa com goles de cerveja, depois água ardente e termina deixando escapar uma lágrima. Isso que sinto pode igualmente ser descrito, de forma mais simples, como a paz fria de alguém que sabe algumas coisas, enfeita com artifícios as que desconhece e dorme em paz com sua ignorância.
O caminho está traçado, todas as possibilidades e estratégias delineiam-se em perfeitos traços pretos no branco de minha inspiração, mas o tempo ganha de mim, eu estou em paz e espero.

(Thiago Cunha)

Boa Balada

Passava por mim a pequena placa magnética empunhada pelo segurança. Apita, era meu molho de chaves, mostro o chaveiro com a bolinha de tênis pendurada e sou cumprimentado com: “Boa balada”. Quase sempre é igual, você sente um cheiro de cigarro com o qual logo se acostuma, só provando mesmo do seu veneno no dia seguinte, quando a calça jeans infestou o quarto, o jogo de cama e o cobertor guardado. As pessoas estão quase sempre felizes, algumas juntam seus créditos para comprarem garrafas inteiras de destilado, outras preferem limitar-se às periódicas idas ao bar, para repor sua latinha vazia de cerveja. Sobre a música, prefiro que seja boa nas primeiras duas horas, para que nas próximas apenas ecoe em meus devaneios embriagados com um sonzinho animado.
É, é preciso estar bêbado. Vodka com coca vem sido a escolha mais eficaz e econômica. Destilados fazem mais do que relaxar a boca e soltar palavras de um raso inconsciente, destilados fazem com que você ria no meio do beijo da desconhecida, simplesmente pelo fato de você nunca saber como aquilo foi acontecer. Te permitem pequenos segundos de completa lucidez, fazendo-te passar por louco porque a conversa logo volta às mais inacreditáveis bobagens, e a menina dá risada, pega a sua mão e a comprime contra a sua cintura. Grava-se então o número na agenda do celular, o nome da garota seguido pelo do estabelecimento.
No outro dia, além das reclamações da sua mãe pelo mal cheiro das roupas e da vontade de beber água, figurará em sua cabeça a imagem daquele sorriso abstrato. Abstrato porque, considerando a bebedeira, a menina já era mais o que você queria que ela fosse do que ela mesma. Às reais qualidades são adicionadas outras, que seja uma vozinha rouca, um mal humor imperceptível, fazendo da reles “Dani Festa do Edu” tema de sonhos acordados e destino de mensagem de celular por uma semana inteira.
Qualquer percalço nessa curta jornada de checar a verdade (sempre existirão, vários) pode pesar mais de um dos lados. A Dani pode se fazer de desinteressada na provável próxima vez que saírem, e isso renderá a insegurança do conquistador e uma mensagem enviada por ele à “Isa Juquey”, que parece estar sempre disponível e simpática.
O contrário também acontece, talvez a Dani tenha um péssimo hábito de dar risada de tudo, o que mudaria toda a história e talvez até seu nome na agenda do celular: “Dani Mala”.
Enfim, o ciclo não é mais duradouro e complexo que isso. As coisas podem funcionar, e calculando as determinações bem “por cima”, a resposta positiva viria de um cruzamento das matrizes: “amigos no orkut (ou falta deles, já que ser blasé virou um cartaz legal)”, “aparência física (ou “fofura”, quando a simpatia se sobrepõe)”, “número de vezes que faz rir”, “número de vezes que diz alguma coisa que o outro não sabia”, “estilo (o que inclui vestimenta, postura, uma certa indiferença, mesmo que proposital)”, “que faculdade faz (análise essa com um fundinho monetário) ”enfim, tudo o que é vital para um relacionamento estável e tranqüilo. Sendo essas informações levantadas por ambas as partes e entre elas houver acordo, aí já é outra novela. O mais provável é que a agenda continue crescendo.

(Thiago Cunha)

Dança na Varanda

Um passo de cada vez
Sinta o vento
Ao passar entre seus pelos
A acalmar a tensão de seus trejeitos

Olhe pra lua, sempre ajuda
Agora pra mim
Se entregue, deixe-me a conduzir

Incline-se um pouco mais
Sorria, onde está sua expressão?
Não se prive da sensação
De ser invejada por tantas janelas
Nunca abertas, mas acesas
Essa luz que nos rodeia

É paixão, estou certo
Ou não estaríamos na varanda
O céu não estaria aberto
E a inveja não seria tanta
Das janelas, pela nossa dança.

(Thiago Cunha)

Um Amor Enigmático (é o que eu quero)

Quero uma moça de sorriso simpático
Dentes perfeitos, belo corpo
Mas séria e de casaco
Um amor enigmático (é o que eu quero)

Quero uma menina bonita sem querer
Que tenha lido vários livros, mas que não tenha assunto
Uma mulher capaz de ir do céu ao obscuro
Numa fração de segundos

Que não negue sua estrela
Mas que também não a perceba
E que cante desafinada, mas com tal delicadeza
Que faça do “tom” um irrelevante artifício

Quero uma princesa possível
Comunicativa, porém solitária
Uma garota qualquer com ar de apaixonada
Esperando ter, finalmente, a menina de seus olhos parada
A fitar um único alguém

Quero uma menina com muita melanina
Mas que use protetor
Uma sincera de sorriso sádico
Carrancuda de olhar desamparado
Um amor enigmático (é o que eu quero).

(Thiago Cunha)

Esperança - 2002

Esperança é não saber
E esperar, torcendo

Não se dar por querer
Nada de muito trabalhoso
Esperança, um fio de sonho doloroso
A incomodar

O que você é de fato, hoje
É sempre quase o que Deus te prometeu
Sempre um pouco da vela que ascendeu
Sempre quase

Suas roupas, seus amores
Sempre parte do filme que assistiu
Um pouquinho do galã que sucumbiu
Ao olhar de uma mulher
Bem mais bela que você
Esperança, do que você podia ser

E ao contrario da felicidade, que não tem começo
A esperança não tem fim
Futuro imperfeito
A certeza de um tempo
Que quando chega já é velho
Outra vez

É o que te faz viver
Sem nem saber porque
É o que te faz acordar
Faz o dia amanhecer
Esperança...

(Thiago Cunha)

Tudo um Grande Desperdício

Que no começo de um sono enfadonho
Uma lira aguda venha me obstruir e abrir meus olhos
Fazendo com que tudo seja ao menos compreensível
Que a verdade seja palpável e visível
Flutuando entre todas as conversas, ligações de telefone

E assim acorde, numa mesa de bar
Pensando em alguém que talvez nem exista
Mas que seja tão presente e falante
(No meu pensamento ou em alguma outra mesa)
Que não me deixe mais pensar

Que eu acorde e veja a vida bem mais fácil
Não só com os olhos, mas com tudo o que há de ser sentido
Nesse caminho oblíquo que insistimos em seguir
Para, enfim, nos encontramos pais e trabalhadores
Sorridentes e catalogados

De repente acordar e me ver cansado
De correr atrás de mais tempo pra ficar parado

Embriagado pelo amor
Louco, mas com cautela
Loucura bonitinha de novela
O marido que morre tísico
Com metade de um sorriso
Olhando pela janela

Mão apertada por algum parente
Que desmarcou um compromisso
Para o adeus condolente do ente querido
Vidas e vidas, reuniões, filhos, amor, imóveis, inquilinos
Metade de um sorriso, tudo um grande desperdício.

(Thiago Cunha)

Falta Alguma Coisa

Falta alguma coisa de bicho em mim
Em um canto de minha cabeça
Que se estenda pelas veias e se instale
Por todas as partes da minha emoção

Falta parar de pensar
E topar com a verdade em toda esquina
Falta dançar carnaval, dizer que te amo e te empurrar na piscina

Falta ser, eu pra você
Um amor que dure
Sem perguntar
Um buquê sem cartão
Mas que já diga tudo

Falta um abraço depois de você chorar
Sobram palavras, linhas de pensamento que eu tenho que cortar
Falta careta, risada, piada, beijo, de todos os jeitos

Falta um buraco no meio do dicionário
Falta algum erro lunático ou embriagado
Na viga mestra da minha razão

Falta você, sobra você
Dentro de tudo que é certo ou não.

(Thiago Cunha)

Soneto da Pobre Alma Feliz

Abrasa as suas vontades
As tantas coisas sem escolha
E a pressa que todas
Imprimem em sua verdade

O frio na espinha
A falta de sono e sonho
Problemas pendurados como adornos
Na sua humilde gargantilha

Apertando-te o pescoço
Por onde o ar já passa esquivo
E já nem pensas mais nisso
Por terem prioridade os outros

O dono da venda, a meretriz
A pinga e o parco carinho
Miúdos remorsos reunidos
Numa pobre alma feliz.

(Thiago Cunha)

Me Ensina

Papai, as cores marrons do seu dia
A fricção de seus sapatos
No chão do seu trabalho, aquele barulhinho

Mal você chegou, atrasado ou não
E quanto já tempo fazia!
Aquele cheiro de cachimbo...

Você andou escrevendo (não foi?!)
Aquelas coisas que fazem a mamãe chorar
E você cair numa risada tímida
Papai, não entendo

Você sempre faz isso, tava escrevendo não tava?
Me ensina!

Porque eu te vejo e sinto muita coisa
Da minha cabeça, do meu corpo inteiro
Mas nada parece com você
E o cheiro que você só tem de tarde

E com quando abre seu sorriso
Que não é bonito nem feio
Mas que me mata de saudade

Eu não leio Papai, você sabe
Mas é isso que te faz ser assim (é sim!)
Isso que você escreve
E que a mamãe esconde de mim.

(Thiago Cunha)

Sim

Que fossem flores aquilo que você me deu
Ainda sim, com muito afeto, lhe resguardo minhas dúvidas
Mesmo sendo de flor a forma de tudo o que você sente
Te vejo somente como minha, forma única de você

Que consegue com frases me ater
A um pensamento divergente
Guiado por todas as suas palavras
E eu, de repente, me vejo com os adjetivos
Com os quais você já me puniu e presenteou

Me vejo com seus olhos, pisco com seus cílios
Vejo só o que você me permite
Divago com o que de você passa desapercebido
Uma subjetividade clandestina que me enfeitiça por não ter você

Por me deixar perdido
Te esquecer e depois te querer mais
Lembrar que você já me tem
Que está diluída em mim na mistura mais salubre

E uma noite você diz que me ama
Eu gozo da existência da reciprocidade que antes me afligia
Minhas dúvidas diminuem e ainda te quero
Com a certeza de que trocamos os olhares certos

Uma manhã você não diz nada e eu já sei
Você quer estar ali pra sempre
Me pergunto se eu também faço parte de você
E calada, só com o olhar, você diz:
Sim.

(Thiago Cunha)

Longa Francês

Te amo com câmera de filme europeu
Com toda a subjetividade de um ponto branco no breu
Te amo com as rugas de uma foto em B
Com a fumaça do chuveiro
Com barulho de talher
Com o salmon do azulejo

Te amo do jeito que você quer ser
Diferente de todo mundo
Do jeito que esquece
Os nomes dos seus amigos

Te amo com todos os sinônimos que ninguém conhece
Com versos de poetas malditos
Livres e brancos
Com refrões de cantores nunca antes ouvidos

Amo todos os seus cigarros
Toda lágrima do seu pranto
O seu cabelo desgrenhado
Sua aura de cinismo

Teu contentamento mudo
Todo o seu ódio contido
Num rosto tão puro e branco

(Thiago Cunha)

Mosca

Havia dezenas de passarinhos sobrevoando a varanda do meu apartamento aquele sábado. Eu, bebendo um vinho barato e tentando presenciar algo interessante nas janelas dos outros prédios, demorei para perceber a presença de uma mosca no parapeito. Bichinho que instantaneamente foi digno de toda minha consideração.
Onde já se viu? Arriscar suas poucas horas de vida – não sei se ela era das espécies que só vivem 24 horas – naquela “barra pesada”. Ficava estática, esfregando as patas umas nas outras. Tão calma que até a mim ignorava. Eu, humano de vivência e cérebro avantajado.
Minhas tentativas de aproximação eram ridiculamente fáceis, o que deixava sem propósito qualquer ensaio de homicídio. Ela era a Gandhi das moscas. Pássaros, humanos, nada a abalara, seus olhos já eram arregalados de nascença. Talvez já tivesse amado, tivesse provado seu valor e naqueles minutos – eternos minutos – refletisse. Talvez ela fosse superior a tudo isso, talvez vinte e quatro horas fossem um martírio e nada mais valesse a pena a não ser vivenciar a chance de encurtar sua via-crúcis. Fitou-me pela última vez e partiu, superior entre os pardais. Ainda não sei se era recém-nascida ou idosa, hedonista convicta ou conservadora perdida, sei que era uma mosca e que com certeza ria de mim.

(Thiago Cunha)

Eu Sempre Vou Te amar

Eu tenho você no pensamento durante quase todo dia. Não estou pedindo nada em troca, nenhuma satisfação, só queria que soubesse. Queria que soubesse que você era o começo do meu plano e ao mesmo tempo ele inteiro, meu ridículo plano de finalmente gostar de alguém. Você seria, entre as outras, aquela pela qual eu era devoto, todos os seus defeitos seriam como deslizes dos deuses, remediados sempre com um ato sublime, e suas risadas iriam transcender a visão e esconder-se, durante dias e semanas, nos sonhos dos quais ninguém gosta de acordar.
Sentiria por você algo muito forte, talvez até forte demais, mas que sairia de mim em doses homeopáticas e, tranqüila, você não perceberia meus exageros. Te ligaria muitas vezes sem razão, desligaria me questionando sobre a reciprocidade de tudo isso quando você dissesse que não podia falar, que seu patrão estava lá perto, e passaria o resto do dia chateado, pensando no seu sorriso. Voltaria a te ligar de noite e você, agora desocupada, falaria uma hora sem parar e me faria pensar que talvez eu devesse estar louco, que nada poderia ser tão bom assim.
Iria lutar contra minha tendência à solidão com todas as forças. Freqüentaria os lugares mais chatos, conheceria e seria pelo menos um bom ouvinte de seus amigos, tudo para sentir seja isso o que for que todo mundo (todo mundo!) sente. Você era o meu plano inteiro, mas acho que acabou não dando certo.
Eu te beijei como todo mundo, sem ao menos te conhecer direito. Você também, como todo mundo, disse que não acreditava que aquilo pudesse estar acontecendo, enquanto eu passava a mão no seu cabelo e o jogava para trás de sua orelha. Mas não sei, talvez porque eu já tivesse esse plano na cabeça ou simplesmente por eu ter gostado mesmo de você, achei que seria diferente.
Tudo em vão. Quando eu te vi pela última vez eu percebi, era tudo em vão. Você até esboçou um sorriso, a gente conversou bastante, uma conversa diluída em simpatia e pequenas confissões, mas nada demais. Eu torcendo para que as poucas cervejas que eu pude comprar fizessem efeito, que a conversa fosse aproximando nossas bocas e culminasse num beijo, que depois dele você fizesse uma “carinha” tímida e corresse para o seu amigo, que voltássemos a conversar e que o segundo beijo fosse bem mais natural e consciente, tudo em vão. Você quis ir embora cedo, ficava brava quando todo mundo deixava a gente isolado no canto. Me deu um beijo de tchau: “A gente se vê.” Abortei meu plano.

(Thiago Cunha)

Ah de Mim

Ah de mim

Ah de nós que de tudo sabemos um pouco
Reconhecemos pela parte um todo
Que se figura como triste constato

Ah de nós, pseudo-intelectuais
Que não somos inteligentes, mas quase
E guardamos a dor pungente de saber, simulando, muito mais

Um feixe de breu penetra suas janelas com clareza
E deixa esparramar na sala-de-estar a certeza
De que o operacional é do amor ao parafuso
E do naco doloso já não deriva cabal corrupto

A subjetividade tem a verdade como brinquedo
O perdão, ainda sem o mesmo aval de cruzes e penitências, nunca foi tão aceito
E a impunidade veste, de fininho, a carapuça da misericórdia

Sim, porque caso não seja por misericórdia
É coisinha besta que todo mundo esquece
O que não sei se é aptidão ou fardo
E entre todas essas coisas do saber e da memória
Ando aflito por saber o que deve ser lembrado.

(Thiago Cunha)

A Poesia

A poesia nasce espetada pra fora. Sinto isso, como um cordão de sunga empurrado pela agulha, uma coisa que irrita se não sair. A agulha, na poesia, um estado profuso de sentir ou várias doses etílicas.

A poesia usa de alguns sinônimos, usa entre verbos pomposos substantivos muito simples, e torna-se serena. Orgulha o autor os segundos nos quais o leitor faz uma pausa, fecha o livro entre o dedo na página marcada, e olha por instantes o andar corriqueiro das pessoas.

A poesia de amor costuma usar o diminutivo, quando entregue totalmente à emoção, mas fica também muito bonita honesta, ponderando entre os prós e contras.

A poesia fala da vida também, muitas vezes da sua pouca importância, e nessas horas imagino o humilde autor debruçado na varanda de uma casa de campo, cuja a altura mal lhe quebraria as pernas caso tomasse coragem e pulasse. Degustando do gelado da brisa na noite quente, da lentidão das folhas das árvores, todas emaranhas pelo álcool transitante no sangue e pensamento.

Essa poesia, ponta de vida, testamento, carta de suicídio, irá então ser lapidada pelo mesmo artista, dia seguinte, porém com a lupa de quem sabe que aquilo foi apenas uma espetada mais chata e urgente, entre esfregões carinhosos na cabeça dos filhos.

Equilibra-se então seu conteúdo, e a pergunta egoísta de antes estende-se a outras vidas e momentos. Troca-se “mulher” por “pessoa”, “eu acho” por “dizem”, e sublima-se a linguagem universal adornada pela assinatura rabiscada.

Pessoas poderão recitá-la no Natal, crianças se alegrarão ao entende-la em parte e logo dirão que gostam, dirão que é isso que querem ser quando crescerem: poetas, escritores.

Quando realmente forem grandes, porém, descobrirão o velho livro na gaveta de sua mesa no escritório, na mesma página, e pensarão que talvez seja tarde. Tarde demais para confessarem-se espectadores da vida, além de vivê-la, o que é inevitável e simples.

Uma dessas crianças crescidas, surpresa pela constatação, se permitirá meia hora de descanso na praça durante o almoço, quando avistará ao longe o poeta pagando a conta de luz.

(Thiago Cunha)