26.6.06

Olhos

Eu e seus olhos conversamos muito. Ele com um azul profundo e eu a perguntar sobre coisas diversas, todas numa língua nova, muda, cheia de neologismos que nosso amor inventou.

Para falar com os olhos, tem de se atentar às suas particularidades. Quando fecham de leve é bom, pois acontece quando a boca abre e os aperta, num sorriso. Quando arregalam, aí é preciso ponderar. Pode ser uma surpresa agradável, um tremendo espanto ou, isso muito raro, um pedido pra que assopre o cisco.

Os seus fazem tudo isso com uma irregularidade que todos os olhos deviam ter. Eles apertam de leve, você logo acha que “tá bom”, “tá feliz”, mas logo deles cai lágrima e você fica sem entender. O que é bom, posto que não há nada mais enfadonho do que olho pragmático.

Outro dia mesmo me diziam coisas sobre você em troca de elogios que saiam da minha boca. Gostam-te tanto, apesar de dizerem que você é parte deles e não o contrário. Vangloriam-se pelas coisas bonitas que já filtraram e até hoje perambulam aí dentro, espiando às vezes pra fora através deles mesmos que, quando isso acontece, brilham.

E para preservar em você o sorriso e neles a cintilação, fazem descer as cortinas da pálpebra para o inapropriado e, abertos, focam bastante em borboleta, criança, filhote de cachorro... Confessaram-me ficarem sem graça na olhada que você dá pro espelho de corpo inteiro antes de entrar no “Box”, mas num acesso de pilantragem que não é normal nos olhos disseram que é lindo, uma coisa maravilhosa que os meus, em conversa particular deles, assumiram nunca terem visto em mulher alguma. Meus olhos também têm lá suas malandragens e me pintam como um bom rapaz para os seus.

Pelo respeito mútuo que existe entre eles, as manhas do meu castanho fazem calmo o teu azul, que sereno comprime-se em contentamento, deixando apenas uma brecha por onde escapa um ou outro segredo.

Lá Dentro

Sou, dentro do corpo em que me refugio, uma massa indiferente de ar. Estou atrás da boca que ri, do olho que chora. Sou o nulo desejo de qualquer coisa, ainda que meu corpo e o cérebro de meu corpo acordem, trabalhem, tenham lá os seus prazeres e durmam.

O jeito com que rio só repuxando o lábio superior direito, e que as pessoas ficam sem saber se é cinismo ou só meia risada, isso não sou eu. Estou lá dentro, assistindo-me sofrer, observando complacente como é inevitável a excitação da alegria.

Sou o que todo mundo tem, apesar da maioria não saber, coisa essa que não se explica por genética ou ambiente ao qual na vida foi exposto, tanto porque meu corpo, bem educado em intelecto e maneiras da alma, não consegue sentir a dor dos famintos da África e meia volta xinga motoboy pesadamente. Mas eu não sou isso.

Não sou meu gosto recente por Chico, nem com qualquer outra coisa posso afirmar que me identifico, porque eu, lá no fundo, sei o que faz a cabeça do meu corpo gostar disso ou daquilo, inevitavelmente.

Sei que uma mulher de saia terá grande vantagem aos olhos de meu corpo, e que se sua voz for rouca e os movimentos lentos, vai deixá-lo louco. Eu sei. Ele vai consultar a cabeça sobre suas chances, acreditar que terá alguma, dilatará a auto-estima o máximo que seu cérebro permitir para então esparramar frases de final de semana sobre ela, provavelmente não só uma mulher de saias que anda devagar.

A vantagem do meu corpo é a de, em instantes de particular abstração, sentir uma coisa que não pinica, não faz cócega e não dói, que sou eu. Sou como perguntas enrraigadas na aceitação das coisas, a indiferença que “reseta” o programa do meu corpo, pra que tudo pra ele seja um pouco novo, sem deixá-lo perceber extamente quando foi que desligou e voltou a funcionar.

Mulheres de saia ainda não foram reconhecidas por seu invólucro, ao menos a grande maioria, e nisso eu e meu corpo levamos vantagem.