24.12.05

Estrela Natalina

Acordou bem mais cedo do que deveria, em uma dessas adaptações de fuso horário. E iria voltar a dormir, caso a vontade de ir ao banheiro não fosse tão urgente. O ranger da porta acordou o cachorro que passou a seguir seus passos vagarosos entre os cômodos do apartamento.

"Quer sair?" Perguntou o dono com suas primeiras palavras do dia, coincidentemente as únicas que o cachorro entendia. Ele andou até onde se guardava a coleira e sentou-se, revezando a atenção entre o dono e a tira de couro pendurada no gancho. Queria dizer que sim.

E foram então, durante a manhãzinha ainda escura, passear. O roteiro foi o mesmo, o itinerário dos xixis e das árvores. Como sempre, as paradas eram freqüentes e exaustivas, mesmo não tendo mais líquido, o cortejo era necessário, o cachorro erguia as patinhas de trás e o dono esperava, por já estar acostumado.

Os sensores de iluminação faziam o passeio dos dois piscar, bem mais amplo e colorido que as árvores de natal que enfeitavam os prédios. As ruas cumpridas e arborizadas formavam um grande pinheiro de luzes seletivas, cadenciadas pelo “clic-clic” das câmeras de segurança. Mas ninguém percebeu, nem o cachorro e o dono, que estavam muito perto, nem qualquer uma das outras pessoas, que preservavam a saúde ao dormir.

Era só uma coisa bonita, entre o claro e o escuro, como tantas outras. O dono outro dia ponderou sobre o verborréico e a introspecção, duas coisas que é, também sem perceber, em tempos diferentes. “Tudo é bagagem, bagagem...”

Das coisas que passam desapercebidas, os sonhos hão de te lembrar. Sonhemos com a estrela natalina.

Façam ou Se Recusem a Fazer


Façam ou se recusem a fazer arte, ciência, ofício. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida espiando amultidão passar. Marchem com as multidões.Aos espiões nunca foi necessária essa "liberdade" pela qual tanto se grita. Nos períodos de maior escravização do indivíduo, na grécia e no egito, as artes e as ciências não deixaram de florescer.

Será que a liberdade é uma bobagem?... Não. A vida humana é que é alguma coisa a mais que ciências, artes e profissões. E é nessa vida que a liberdade tem sentido e é direito dos homens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que há de vir.

(Mario de Andrade)

16.12.05

Velhos falando da Rita

- Já não penso mais nela.
- Que bom.
- Por que bom?
- Sinal de que você esta se gostando mais sozinho.
- Mas quero outra, quero encontrar outra.
- Assim não vai achar nada.
- Assim como?
- Assim, pensando ainda na Rita.
-Mas já falei que não penso mais!
- Se insiste tanto e fica bravo como está agora, pensa sim.

- Ah, me poupe, não quero sermão de pseudo-intelectual, Renato. Você está sozinho por incompetência, e duvido também que haja ideologia no fato de você não ter grana. É incompetência de novo. Não sabe nada dessas coisas.

- Vejo que ainda pensa muito, muito nela.

-Talvez...


- Pois saiba que eu também já pensei, ainda penso, principalmente aos domingos, em muita gente. Mas a tristeza que sinto ao constatar que tudo passa é maior que a advinda da saudade, que vai minguando.

- Tudo passa, isso é verdade.

- Verdade triste amigo. Já passou o tempo em que quis, e pude, correr atrás de dinheiro por meus méritos, assim como vai passar o rancor que eu senti, minuto atrás, quando me ofendeu com o assunto.

- Desculpe. O que sugere então?

- Que faça o que tiver vontade. Mais importante que a coerência é a vontade. Eu, por exemplo, não peço desculpas, não falo que amo e evito elogiar demais. É egoísta, todos sabemos, mas não faço porque falta vontade. Se fizesse, seria pra agradar, ia ficar segurando aquele meu sorriso de foto até finalmente até estourar num desaforo de honestidade, me conheço. Não sei o que faria, por exemplo, se dia desses me declarasse e ganhasse um sorriso de volta. Iria a loucura, o amor envolve muita coisa.

- É…mas Rita é diferente, viu? Muito dela é diferente. Sei que não morreria com a sua ausência, que ver ela com outro seria tanto um choque quanto um alívio. Talvez isso que ainda me deixe nessa angústia, não é? O fato de ainda não ter visto.

- Anda falando com ela?

- Muito pouco. Outro dia ela me ligou, achei conveniente não retornar, talvez por escutar muito você e essas suas besteiras.

- Nunca falei pra não retornar. Falei pra ser honesto. Acho que a monogamia não é só boa pro coração, mas também pra cabeça. Melhor ainda estar sozinho, mas isso vi que o senhor não consegue. Se for sair com a Rita pensando naquelas secretárias do escritório e na última com quem você andou jantando, por favor, não se dê ao trabalho. Ela vai se chatear, o que te deixará feliz por um tempo, mas tratará de esquecê-lo em velocidade alucinante. Deixe-a estar, assim preserva a ternura na lembrança dos dois.

- Então não ligo? Não faço nada?

- Se for tentar levá-la pra jantar e esticar pra algum motel, não. A imaginação dela faz melhor que isso. A não ser que queria se comprometer. Isso de “1 não quer, 2 não fazem” eu não gosto. Conheço a Rita, ela não daria só uma metidinha.

- Olha lá Renato, olha como fala.

- Desculpe.

- Você sabe, o sexo não era o melhor, ela não era a mais bonita. Mas quem sou eu, não é mesmo? Quem sou eu? Agora os cabelos deram pra me deixar de uma hora pra outra. Minha cabeça já reluz sob lâmpada de elevador.

O outro riu, ostentando aquela cara de monge que ele só começou a fazer de 2 anos pra cá.

- Ai, ai Fernando. Pessoa é que tinha razão, quem inventou o espelho destruiu nossas vidas.

- Renato, pára com isso. Eu to falando de coisa séria. Penso em tudo isso que disse, mas é inevitável, por mais que eu ame a Rita, que exista o desejo por outras.

- Verdade. Não ligue então. Se ligar diga isso. Fale que ela realmente está fora do peso, que você está ficando careca, mas que gostaria de vê-la.

- Mas isso é uma loucura que nunca funcionaria.

- Mas que se funcionasse ia te deixar mais tranquilo. Passa também pela cabeça dela, pode estar certo. Você tem de decidir se quer ser bicho ou homem.

- Bicho por gostar de sexo?

- Não, bicho por achar que isso é base de alguma coisa, ou que haja triunfo em ver mulheres diferentes abrindo-lhe as pernas. Acho que existe preço pra isso, 30 reais em casas baratas, chegando a uns 500 nas mais requintadas. Comece a freqüentá-las, sexo é mais simples como valor de troca monetária. Eu mesmo pago, não pra me abrirem as pernas, mas pra não chorarem, não me ligarem, não plantarem em mim nenhuma semente de afeto.

- Pois acho que é você que, desde moleque, nunca esqueceu a Fátima! Ela milionária, você arranjando teorias “milaborantes” para pintar seu fracasso como opcional.

Bicaram na dose de uísque, esperaram dois seguntos para digerir o acesso repentino.

- Deixe eu continuar. Existe também a opção de ser homem. Não se pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. Os que misturam ou ficam duvidosos na escolha, acabam tristes. Por quê? Porque quem quiser encontrar profundidade na pessoa com quem mantém uma amizade futilmente erótica vai se frustrar, assim como quem quiser, de uma mulher companheira, simpática, prestativa e amiga, desenvolver o lado lascivo. Essas relações são inviáveis…a primeira assombra a cabeça, cria as mais assustadoras imagens e desconfianças. A segunda frustra o corpo, e também pega no pensamento, formulando pouco a pouco a certeza de que talvez seu tempo esteja sendo desperdiçado. Eu digo, Jorge: seja homem gratuitamente com alguém que saiba que você paga pra ser bicho. Honesto assim.

- Nunca devia ter te pedido conselho.

12.12.05

O menino

O menino subia sempre o telhado da casinha antiga, e entre os frios da parabólica passava religiosos 15 minutos, todos os dias, enfrentando do frio mais agudo ao mais extenuante mormaço.

- Que é que esse menino faz, Maria?

- Tem saudades - respondia a mulher sem se virar do tanque.

- Mas saudade de que jeito, o moleque nem é gente.

- Pois pensa assim você, que é velho xucro. Ele vê novela, normal é que fique desse jeito, amuado. Deixa.

- Novela, novela, ele precisa é de um cacete que faz tempo que eu não dou - isso falou sem a mínima intenção, olhando pro menino até com ternura.

A mãe, se perguntando de onde ela tinha tirado a lógica entre novela e introspecção, tentava remediar: - Ou é menininha, nessa idade essas coisas são confusas.

- Ô Nega, agora eu que tenho que ser poeta, essas coisas são confusas o tempo todo, até de velho. Mas olhe lá, minha flor, se todo mundo for por aí escalando antena pra pensar em amor, haja viuvez nessa terra.

Maria deu um sorriso que foi adocicando até “minha flor”, pra logo depois ser reposto pelo lábio murcho de esculacho que ela fazia.

- Deixa ele lá Jorge, larga a mão de ser turrão. O menino ta quietinho, daqui a pouco desce, você conhece.

O homem foi andando em direção ao telhado, o menino pressentiu a chegada e logo se recompôs do que for que seja que estava fazendo.

Disse paulatinamente: - Oie!

O pai respondeu com um sorriso que seu espírito enferrujado já não sabia dizer o que era. “Esse tico de gente filosofa, zomba de mim, viaja, volta, vira menino de novo...” Chacoalhou de leve a cabeça tentando espantar o pensamento.

- Oi, pode descer, não quero mais essa brincadeira. Se você, deus me livre e guarde, leva choque ou cai, não sobra nada.

- Está certo, papai - por dentro a criança riu e computou a sexta vez que os dois tiveram as mesmíssimas duas linhas de diálogo.

Andou pelo quintal desviando dos morangos, a mãe lhe gritou alguma coisa sobre aonde tinha sujado aquelas meias, que encardiu e não vai sair. O pai veio logo atrás, já retomado o sorriso.

- Esse menino é meio gênio.

- Você já falou, Jorge.

Senti Saudades

Senti saudades. Hoje já mais nada, talvez esteja fadado a esses sobressaltos levianos. Mas o que ontem me perturbou ainda é fresco.

Foi quando eu comecei a reparar em várias pessoas que isso veio, em especial um casal, que ensaiava as suas primeiras conversas. Era bonito como ele entrava puro, entre cortejos gracejados, constantes mas bem calculados, em parte da vida dela. A porta da menina eram os olhos, que iam cada vez mais perdendo o medo de olhar para os dele. Eles ali cúmplices daquela recepção solene, no auge onde os dois se trancaram em si mesmos num beijo, e eu bravo e curioso por sentir saudades.

A minha saudade foi como que um mundinho visto de longe, mas que ia chegando mais e mais perto, girando, quanto mais fixamente você olhasse pra ele. Vinha rodando, azul, verde, até chapar no rosa da sua casa. E foi tão chata a saudade que me permitia transpor o muro sem que me vissem, os muros, os vidros, me mostrando você a falar ao telefone, receber amigos, pôr a mesa de jantar.

Existe o botão de emergência. Logo após ser comprimido, você é tragado para o mundo recluso de você e tudo que dos outros depende é depurado. Peguei o martelinho e quebrei decidido a pequena caixa de vidro, soou o alarme, mas nada de sair de lá... Era você assistindo filme, escovando os dentes.

E no resto daquele dia, ontem, as pessoas foram as espigas daquela história que modelos e crianças têm como preferida, as ruas o trigal infinito por onde eu passava sorrateiro com a lembrança da minha princesa.

A raposa vadia e rasa que sou eu, que leva chumbo de caipira aculturado meio a impropérios, corre lisa entre armadilhas postadas sempre no mesmo lugar, ontem não encontrou toca alguma, pra fugir ou descansar. Sustentou triste seu pairar randômico, surpreendendo o bando, as apavoradas galinhas, os caipiras e suas espingardas, porque a princesa um dia a cativara, e dela sentia saudades.

(Thiago Cunha)

30.11.05

O Dia Preferido

As roupas estavam quase todas secas no varal. Cantavam baixinho os pardais, como que quisessem dormir e o instinto não deixasse. As ruas do bairro arborizado eram visitadas por seus primeiros pedestres, os postes irrigados pelos cachorros deles.

No supermercado, ainda fechado, senhoras enfileravam-se prazenteiras para a aula de yoga. A moda começou como uma grande rede. Tida como idéia brilhante pelos noticiários, logo se disseminou entre as médias seguidoras até finalmente chegar no pequeno Mercado do Afonso. Diz o dono ter descoberto que, ao iniciar a aula todas as quartas, no dia do sacolão hortifruti, meia hora antes da loja abrir, as velhinhas não só criavam vínculos com o prédio mais antigo do bairro, como também tornavam-se diretamente responsáveis por três quartos da venda de hortaliças no dia.

Maria era aluna ferrenha de Sr. Hitashi, também senhor e que restringia ao nome suas raízes orientais. Seu maior hobby era o de beber cerveja e comer toicinho, o quanto podia, no bar do Renã. Falavam que tinha puxado o pai, da mãe só herdara a simpatia e o bom coração.

"- Estica Glória, vai até o fim. A dor é fraqueza saindo do corpo." A senhora ria, apoiando no meio da coxa a mão que devia estar no chão.

O professor ria junto, tomava nota dos conselhos experientes sobre benfeitorias de cada legume, cozido, no chá, misturas de fruta. Era ordem do Afonso, "Deixa as velhas a vontade". E assim o faziam, o professor e as alunas. Maria, com sintomas avançados de doromania, trazia sempre uma lembraça para Sr. Hitashi, e o remédio irrestível para a frustração afetiva do professor era a queda livre de Maria para o fundo das lojas de "apenas 1,99".

Ao abrir o freezer das bebidas isotônicas, já depois da aula, a senhora ressequida sentia-se novamente úmida e jovem. Como sempre fazia e já preocupava a família, comprava quitutes, um para cada, excetuando os netos que ganhavam coisas sortidas, entre doces e quinquilharias baratas.

"Quarta-feira é gostosa porque tem aula, porque a gente conversa com as amigas e o Edmundo pode ver aquele programa chato na Manchete sozinho. Ana Maria é bom, claro que eu gosto, mas depois que aprendi a gravar no vídeo, vou treinar com o Sr. Hitashi sem remorso. A aula é ótima, lava a lama, tira a modorra, aquele mercado é tão bom. Tem tudo que a gente quer, e bem de quarta, quando eu começo a me preparar pra receber a Ritinha, o Matheus, o Joca e as crianças. Ritinha só come banana de fruta, e no Afonso tem umas ótimas. Hoje comprei Gatorade....vão rir de mim. O gosto é ruim mesmo, esse negócio de atleta."

Ia seguindo, remoendo suas futilidades idosas entre os passarinhos, andando risonha, vagarosamente. A quarta-feira, que fosse por estratégia de marketing ou pura poesia, era bonita, seu dia preferido.

(Thiago Cunha)

No Meu Pensamento

Precede meus dias um momento solitário, de olhos abertos, sozinho, acordado, quando todos pensam que estou dormindo. Nesta hora, olho para o feixe de céu entre as construções e vejo algo tirlintar na cadência do piscar das estrelas, e dezenas de rostos me passam pela cabeça, também nesse jogo de luz, lembrando-me das pessoas da minha vida.
As pessoas da minha vida dormem tranquilas, elas tomaram chá no momento delas de preceder os dias. Existe o sonho, entre essa ocasião e o barulho do despertador, mas não os ouso imaginar, mesmo porque saber até disso seria um carma enfadonho, pra não dizer fatídico.
Recolho-me então aos poucos, tento calcular os dias que já não sonho e chego a palpitar que é esse pensamento negativo a razão de estarem quase extintos. Já não me visitam, enquanto durmo, as lembranças da minha infância, o riso da minha avó e o vento que batia na descida da rua inclinada com a bicicleta. E das vezes que acontecem, as raras e singelas vezes, sou expelido como de castigo pro meio da noite, escuuura.
Penso nas pessoas da minha vida como o sonho que já não tenho, e eu de olho fechado as vejo, abrindo sorrisos e expandindo-os, expandindo-os, até lhes fecharem também os olhos. Elas riem e fecham os olhos, tomam chá na noite estrelada no sonho que eu não tenho, no meu pensamento.

18.11.05

Venham!


Venham leis e homens de balanças, mandamentos daquém e dalém mundo.
Venham ordens, decretos e vinganças, desça o juiz em nós até ao fundo.
Nos cruzamentos da cidade, brilhe, vermelha, a luz inquisidora.
Risquem no chão os dentes da vaidade e mandem que os lavemos à vassoura.
A quantas mãos existam, peçam dedos para sujar nas fichas dos arquivos.
Não respeitem mistérios, nem segredos, pois que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte, relógios a marcar a hora exata.
Não aceitem outra arte, que não sejam inquérito, local e data.
Mas quando nos julgarem bem seguros,cercados de bastões e fortalezas, hão de cair em estrondo os altos muros. e chegará o dia das surpresas.

17.11.05

Por Dentro

Existe um prédio dividido em duas partes. Entre elas, um estreito corredor que serve de rota para transeuntes que migram entre as alas. A passagem também é agraciada por uma das poucas janelas do edifício, talvez a única, sobre a qual as pessoas apoiam fingindo alguma introspectiva ocupação. Algumas forjam esquemas infalíveis de coincidência naquele corredor, cruzam suas extremidades já gavionando a cabeça da pessoa com a qual pretende esbarrar e “tum”, “oi”.

Outras fumam com a calma de estrelas de filme europeu, e as últimas, por não terem vício, contentam-se em fabular longas conversas pelo celular. A quase ninguém basta apenas estar lá, entre uma metade e outra do prédio.

Existe uma menina que “vira e mexe” pára no corredor. Destaca-se pela cara de mal-humorada, pela beleza discreta que as pessoas deixam escapar e principalmente por usar, simultaneamente, os dois últimos artifícios de ocupação antes citados. Seu ritual, com algumas pequenas alterações, é o de apoiar-se lentamente na mureta que emboca na janela, caçar o aparelho celular na bolsa, segurá-lo com um dos ombros e logo acender um cigarro com muita destreza. Me pergunto quem é o receptor dessas ligações curtas e em tão religioso horário, e sobre o que devem tratar. Percebo tudo isso nos segundos que levam para atravessar o corredor, porque me recuso a telefonar sem motivo, já tentei fumar e não consigo, me restando ir seguindo, sem ocupação.

Mas essa menina, essa menina também olha para as plantas imputadas no cantinho de cimento no andar de baixo, seus olhos se transformam em globos lustrosos por onde, prestando a devida atenção, se escuta: “mas que judiação”. E essa, entre todas, é a ocupação mais bonita.

Seu ar de comiseração, porém, reserva-se à pequena área verde. No todo a menina é moradora de uma casinha distante, ligada por um caminho comprido de pedras e toda trancada. Por fora, a construção não chega a ser simpática aos olhos, a menina tem a estranha vaidade de plantar alguns botões do lado de fora e, depois de quase crescidos, esquece-los e vagarosamente espiá-los morrer, dia-a-dia, por entre as frestas da janela. E é normal quem da casa não se aproxima. As paredes são de madeira bruta e sisuda, impressão reforçada por grasnidos de pássaros que não se vê, mas soam próximos, grandes e predatórios.

O que não sabem é que lá dentro mora uma menina toda bem prendada, que fica a ler fábulas distantes e dentro delas inventar outras, nas quais viveria entre as flores que hoje a desafiam na fria inanição por falta de candura. A sala é revestida por um polpudo tapete branco onde de noite ela deita e imagina estrelas, entre as quatro paredes que do lado de dentro são claras.

Sai de sua residência só quando muito necessário. Outro dia saiu para abraçar uma amiga que acabara de voltar de longa viagem, outro pra rir, mais por educação que por graça, da piada de um parente próximo. E a mim, que também a espio ao longe, de uma das janelas acesas na noite serena em que a menina vive, essa conduta encanta.

Caso nela não se figurassem o cigarro e o celular, sua casa seria muito convidativa, um barraquinho escancarado entre tantos outros, no mesmo espaço. Prefiro, um dia que tiver tempo, ir pelo caminho de pedra munido de um par de clips e surrupiar pela porta de trás da casinha distante. Visitá-la em todos os cómodos, passar a chave, me trancar por dentro e, por dentro, conhecer a menina.

(Thiago Cunha)

11.11.05

600 reais

Todas as decisões, até as permeadas do mais profundo sentimento, tomadas de surpresa ou calmamente entoadas pelo cantar de passarinhos, todas elas, em certo momento, são convertidas à moeda corrente.

E é confuso tudo isso. Trabalhe-se para ganhar dinheiro. Com ele, nos escolhemos hedonistas: amantes de um chopp com picanha, japonês durante a semana, mãos fechadas: clientes VIP da locadora do bairro, sonhadores perseverantes de uma casa de quintal verde e grande quando já estivermos velhinhos, e no fim ainda nos encontrarmos, mesmo enrugados e incapacitados de fazer amor, pensando em dinheiro.

É confuso tudo isso. Dizem que se deve trabalhar com o que for de gosto, com o que mexa com a alma, anime a cabeça com tal efusão que faça a vida parecer passar bem rápido, com a fluência de seu extrato bancário em paralelo, lívida entre as contas que deduzem seus valores automaticamente. Se for só pelo dinheiro, dizem, é pura frustração e caminho sem volta para stress. Stress, essa definição tão hermética. E caso seja verdade, me pergunto sobre o propósito e a ponta de vontade na alma de caixas de bancos sorridentes, frios cirurgiões e dos carcereiros sob todos os olhares fulminantes dos que cuida.

Você então se fará por não entender, vai torcer o nariz e rir enfadonho. “Não é todo mundo que nasce em berço de ouro”, já posso ouvir, e calma, lhe peço, concordo. Concordo que é preciso, antes de tudo, cumprir o contrato com a sobrevivência. Sobrevivência, tão pouco menos hermética, ainda mais mística quando capitalizada.

É confuso. Suponho então que estas pessoas que trabalham no que não gostam, só por necessidade, pensem bastante em alguma alternativa que lhe renderiam mais prazer e, inevitavelmente, mais dinheiro. Mas o sonho então se calca no gozo bem distribuído em 30 dias ou concentra-se no quinto dia útil do outro mês? E se por desprendimento metafísico e paz capitalista alguém disser que é só pelo dinheiro e pronto, o prazer de usufruí-lo não vem junto? A delícia habita o monte que se junta ou os pouquinhos que se gasta, aqui e ali, no cartão e em espécie, tendo, enjoando, vendo outro, juntando mais. Uma roda intermitente de fisgadas de felicidade, isso é o que vivemos.

É piada comum de veterinário dizer, quando castra o cachorro que nunca havia procriado, que é melhor assim, antes a ignorância que a abstinência. Me agarro nisso então, com o pouco que ganho, meço com um esquadro de 600 reais mensais as delimitações sentimentais da minha alma e torço com olhos apertados para que nunca, nunca venha a, por algum acaso, petiscar em um american bar de hotel 5 estrelas, ou, na sorte de algum código de barra, ser agraciado com uma viagem para país estrangeiro. Ia acabar com a minha paz, sobrecarregar meu coração que já nem imagino como feito de ventrículos e sim dividido entre cozinha, quarto e sala.

É melhor assim, concordo com ele que também deve levar mordidas e tosar por dinheiro. Melhor eu não saber, talvez por me achar inteligente o bastante pra aproveitar de todo, mas muito pouco propenso a me submeter a tê-lo por contínuo. Tudo é proporcional. Tento acreditar nisso, venho tentando. A felicidade e tristeza são garantias das almas e carteiras, cheias ou vazias, e agora penso nessa verbiagem pueril como ridícula.

É ridículo. Cismar no dinheiro é tão tolo quanto inútil. Só me deixe, entre as besteiras de bases frugais, acrescentar mais uma, e aí me vou, contente entre minhas limitações: Nossa vida pende na balança do prato das coisas que queremos e do das coisas que precisamos e, entre os dois extremos, a moeda é a única coisa que parece ter peso. Pronto.

30.10.05

Copo Vazio



É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar

É sempre bom lembrar
Guardar de cor
Que o ar vazio de um rosto sombrio
Está cheio de dor

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor
Que a dor ocupa a metade da verdade
A verdadeira natureza interior
Uma metade cheia, uma metade vazia
Uma metade tristeza, uma metade alegria

A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar

(Gilberto Gil)

Cidade Grande

A cidade grande nutre na maioria das pessoas o sonho de, no meio de tanta gente, conhecer alguém que faça o resto desaparecer. Os quilômetros de lentidão nas marginais fazem com que muito do que era pra ser conscientemente gasto com a troca do carro, presente pra mulher e outras coisas que juntam dinheiro pra ter dar nas grandes cidades, seja aplicado em viagens pouco planejadas pra praia e hotéis fazendas. Lá as pessoas das grandes cidades se divertem, bebem vinho, e se prometem que irão começar a juntar pra uma casa no campo.

Você sente mais das grandes cidades quando utiliza o transporte público. Metade das pessoas dorme, porque é cedo e no contrato consta: 8:00 às 17:00. No trabalho, meio às coisas que eles já fazem por anos, pensam sempre em alguém e dá saudades. Não precisa estar longe para ter saudades na cidade grande. Basta cruzar a pessoa duas vezes sem cumprimentar, esquecer de perguntar como ela vai ou se tem alguma novidade. A cidade faz o resto, até você sentir a saudade estranha de alguém que senta ao seu lado.

Quem vive em cidade grande tem milhões de possibilidades. A princípio as pessoas ficam muito contentes com suas escolhas, mas depois, como se tivessem pago por elas, se arrependem e perguntam-se se não acabaram levando só por causa da promoção. A cidade grande, invariavelmente, passa a impressão de que tudo tem preço.

Pessoas das cidades grandes alugam filmes e choram, ou riem, porque fica cada vez mais difícil fazer isso sem nenhum pretexto. Acontece sim, mas de supetão. Na cidade grande, as emoções parecem sintomas de doença de fundo nervoso.

Come-se muita pizza e a expectativa das férias, caso houvesse como medir, seria a mais pesada, a mais alta de todas as outras localidades. Porque o túnel inunda, porque ele viu um assalto à mão armada bem lá na frente e ninguém fez nada. As ondas do mar são mais poéticas, o campo traz uma paz maior, o axé fica menos bobo pra quem é da cidade grande.

O domingo é angustiante am qualquer lugar. Na cidade grande o domingo é um senhor ranzinza e rancoroso, que escolhe a grade de programação das tvs, faz o dia durar menos, lota todas as salas de cinema e, quando muito afetado, faz chover. E nesse dia dá vontade de ligar pra um estranho, dá preguiça de fazer churrasco, e chora-se muito, um choro curto que não sabe ainda se é nostalgia ou medo do futuro.

Na cidade grande as pessoas lembram cada vez menos dos seus sonhos. O sonho é sempre acordado, uma equação de juros compostos, de DRE projetado. Alguns parecem ignorar o stress e o café, e dizem que sempre sonham com gente voando e com beijo, mas esses são poucos.

Quem mora em grandes cidades acorda cedo, trabalha muito, dá uma passada no “happy hour” e dorme com a impressão de que esqueceu alguma coisa. Ajusta o despertador, dorme de lado e com travesseiro, lembra de quanto o médico disse que é bom dormir, mas não lembra do sonho, não lembra.

(Thiago Cunha)

27.10.05

A Menina e o Passarinho

Amanda pediu que eu comprasse um pássaro branco, que já estivesse cantando, de preferência canário. Periquito não canta, mas disse que também podia caso as manchas fossem bem pequenininhas, branco de manchas azuis.

Fui à loja que me parecia mais honesta. Na verdade tinha ido a outra, um enorme galpão, moderno e iluminado, onde bichos escondiam-se assustados na gaiola, na mira de centenas de prováveis donos e toda aquela alta voltagem de luzes frias néon. Os peixes eram excepcionalmente impassíveis, fazendo a única cara que sabiam fazer.

Enfim, não gostei, já me tomara muito tempo a reflexão sobre o paradoxo da liberdade, a gaiola, instinto, asas. E retiro o que disse, não procurei a loja por economia e sim por romantismo.

Fui parar em um estabelecimento que parecia ignorar todo consenso de layout e atratividade varejista. Um lugarzinho apertado, cheio de penas, onde quem ousava entrar era recepcionado por olhares enviesados de frangos criados soltos.

Quase todos os pássaros expostos não estavam a venda. Ou eram do patrão, ou estavam doentes, ou só procriavam porque eram fortes e cantavam bonito, e minhas esperanças iam minguando ali, meio ao cheiro de jiló. Até que, dando mais uns três passos eu vi, escondido entre galos e pombos, o pássaro branco, canário e à venda.

- Já está cantando?

- Tá. Disse o atendente dando um tapinha em um dos cantos da gaiola.

- Quanto?

- Sessenta reais. Oitenta com a gaiola.

Achei caro...

- E é de cativeiro?

- Quê?!

Bem lacônico pra vendedor...

- Nasceu na gaiola?

- Isso não sei, não.

Saí desconfiado sobre a procedência e duvidando da qualidade vocal do bichinho, mas certo de que Amanda iria gostar.


***


Me escondi depois de tocar a campainha, do mesmo jeito que sempre fazia.

- Olha Amanda, o passarinho!

Queria que o bicho desse ao menos um “pio” em sua apresentação, mas permaneceu estarrecido. Nem se deu ao trabalho de fechar o bico, que mantinha aberto desde que entrou no carro.

- O moço disse que canta. Deve estar nervoso.

- Ah, tio. É muito bonito. É lindo mesmo assim! – disse, já chacoalhando as mãozinhas, sugerindo que lhe passasse a gaiola.

Pôs-se nas pontas dos pés, apertou os lábios pedindo um beijo e, mal eles soltaram de minha bochecha, já perguntou por um prego.

- E já sei onde vai ficar, lá na varandinha do quarto. Assim ele me acorda, aprecia a vista e canta com os outros passarinhos. Será que passarinho na gaiola fica triste vendo passarinho solto?

- Acho que não, passarinho não fica triste nem feliz.

- Que mentira, claro que fica, senão não cantava. Ele canta quando está feliz. Ou quando voa. Acho que passarinho de gaiola só tem meia felicidade.

Me intrigou a profundidade de suas conclusões. Há pouco tempo (muito pouco) tudo o que ela fazia era perguntar (muito).

- Fica tranqüila Amanda, não existe felicidade inteira.

- Ah tio, você diz isso porque canta muito mal e não sabe voar.

E disse com uma tranqüilidade, com um desprezo tão sereno, que só me restou perguntar pelo martelo.

(Thiago Cunha)

15.10.05

A Casa Amarela

É uma casa construída em pequeno terreno, mas que ascende em diversos patamares.

O pai acabou de construir, em cima da última laje, um espaço para secar a roupa e fazer churrasco. O filho pediu um puxado lá em cima, para levar meninas e olhar estrelas, o pai disse para ganhar dinheiro e erguer o inferninho ele mesmo.

A casa de um amarelo horrível escolhido pela mãe tinha varandas de peitoris vazados, sustentados por pequenas colunas clássicas dos preguiçosos gesseiros de hoje.

A sala era habitada por um televisor grande, orgulho do pai, pousada sobre um paninho de crochê bordado, obra da mãe. O filho se esparrama no sofá e de tanto o fazer já criou um buraco onde apóia a bacia. A mãe sempre pede pro pai pra repor a espuma, que conhece gente do bairro que faz barato, parcelado.

O pai trabalha, o filho acha que é muito novo e a mãe nunca trabalhou.

Tem um carrinho bem cuidado na garagem que daqui a seis meses o filho vai poder dirigir. O pai está preocupado.

Um portão novo, grande e de madeira protege o carro e a família. Quem passa só vê o amarelo do muro, escuta um sambinha que a mãe deixa sempre ligado lá atrás e repara na melada mão de verniz no portão. O pai passou o verniz, a mãe gostou.

Ontem teve visita, uma tia veio. A mãe arrumou o banheiro porque a ela foi dito que este é o cômodo que as pessoas mais reparam. Prestou atenção na tia quando ela pediu licença da mesa e foi pro lavado, fazia mesmo barulho de armário lá dentro, na certa a tia bisbilhotava a marca do papel.

O frango da mãe é bom, todo mundo adora quando tem. O filho anda saindo muito, o pai falou que vai lhe cortar as asinhas, domingo é pra comer em casa.

O pai leva tudo muito a sério, o filho acha tudo uma grande besteira e a mãe quer é que tudo acabe, pra assistir a novela em paz.


(Thiago Cunha)

6.10.05

O Amor Morreu

O Amor morreu. Foi, como elefante idoso, desfruir sozinho de suas tenras lembranças. Diziam que sua trajetória lhe resguardava ainda muitas alegrias, enganaram-se.Tédio, amigo recente porém muito próximo, disse que Amor andava amuado, que não via razão nem porquê.

Sobre suas últimas palavras, nada se sabe. O falecido não tinha inimigos, uma ou outra briga com editores de revistas masculinas e advogados matrimoniais, mas nada que justificasse seqüestro ou homicídio.
“Há tempos proferia maluquices, impassível, bebendo feito louco, não sei se para comemorar ou aliviar a tristeza”, disse uma das testemunhas ao juiz, mas não precisaria. Um minucioso laudo médico constatou a morte por inanição: “Amor realmente deixou-se ir”.

Vagou por dias por acostamentos de movimentadas estradas, sem ao menos tentar pedir carona. Certa tarde adentrou terreno árido e, no meio da noite fria, sozinho, sobre o clarão da fogueira de livros e fotos, sucumbiu ao que lhe consumia e não tinha nome.

Seu enterro foi simples para despistar a imprensa. Como não tinha família, foi escolhido um cemitério qualquer, em uma simpática cidade do interior. Apenas amigos mais próximos e grupos de jovens pseudo-hippies atenderam à cerimônia.

A perda já toma conhecimento internacional e suas conseqüências são visíveis; Excluiu-se em definitivo a determinação latente de se formar família para crescer na empresa e começa hoje a construção de uma grande muralha nas delimitações da Amizade. De agora em diante, todo olhar entre duas pessoas de sexos opostos é lascivo e o número de filhos já é quase equivalente às ações movidas no PROCON contra as fábricas de preservativos.

O novo ocupante do cargo ainda está sendo prospectado, mas é sabida a intenção da bancada em eleger Tédio, dizem que por sua integridade e inteligência emocional.

Façamos um minuto de silêncio.

(Thiago Cunha)

2.10.05

...

Nada existe de tão importante, outro que as coisas sem importância nas quais cismamos em acreditar. Por favor, hierarquizem minhas possibilidades.

14-2-1933


Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afetos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

Irreversível

As coisas irreversiveis me deixam tenramente amuado. Contemplo com tristeza sua importancia e as diversas maneiras com que sao superadas, por pior que sejam, por motivos que ninguem conhece. Obesos não fazem esteira e, aos domingos, permitem-se grandes diversoes "para comer na hora". Hoje já existem ácidos dedicados a peelings dermatológicos, cirurgia de redução de estomago... Talvez todos estejam esperando para, quando se acharem irreversivelmente feios, voltarem-se as elas. Riem então, cultivando amizades, torcendo para que as com o sexo feminino tranformem-se, no decorrer de confissões e apelidinhos, em um grande amor indiscutivel.

Carecas vivem momentos mais delicados. Depois que começam a cair os fios, o processo só tende a intensificar-se, o que garante as suas vítimas a concepção da triste imagem de seu coro cabeludo todo desmatado e as piadinhas que terão de decorar para amenizar o problema. Eles então se dedicarão ao máximo aos exercícios anaeróbicos, tornarão-se amigos de freqüentadores de academia, gastarão mais com perfume e talvez até troquem de carro.

Os filhos dos dois, porém, serão tratados com a mais frouxa hierarquia, e do careca ou do gordo virá amor paternal de esfregar a cabeça e torcer euforicamente na partida de futebol. Não acaba aí, não quero ser hermético, mas não é ai que acaba. Uma das mulheres irá se dedicar a exercícios, eventualmente. Nas suas coxas irão se delinear o esboço de músculos que, além de fibras bem nutridas do corpo, culminarão em discussões eternas e na maior eficácia do marido em reuniões e projeções de “budget” para os diretores da empresa.

Sim, porque não se deixa uma mulher embelezada assim, solta, sem nenhum respaldo. É preciso, na presença da careca ou da pança, uma postura etérea. É necessário um carro de motor possante, preto, mensagens bem elaboradas por mulheres de igual beleza no celular. É preciso, indispensável, é regra.

Depois disso completo deitam-se em redes, com seus corpos relaxadamente mal cuidados, na praia, gordos e carecas, coniventes e conformados, sentindo o sol que nada custa.

(Thiago Cunha)

29.9.05

Filminho

“Estou presa ao que sou”, pensava ela subitamente. A chuva caia devagar, e o romantismo do barulho das gotas sobre o patamar da varanda se desfazia ao olhar pra cima, pro céu coberto de nuvens negras de onde pingavam. A pipoca estourava na cozinha, enquanto Luisa, já ruminando sobre outras coisas , empunhava a caixa do DVD que havia alugado.“Porque senão eu falaria menos, teria dito o que a Rê tinha falado, só uma coisa: “que bom que você voltou”. Deve ter alguma coisa genética nessa vontade desenfreada que eu tenho de saber demais, de cada detalhe, de rir com esses roncos nasais aos soluços.”

Não chegava a ser um filme europeu (disse ao funcionário da locadora que não queria pensar aquela noite), mas era romântico e encenado por uma atriz espanhola que parecia nunca perder o sotaque. Ela já tinha visto o trailler, mal editado por sinal, pois nos 30 segundos de sua duração mostrou morte, briga e beijo.

“Também tenho isso de gostar de ficar sozinha, de ter preguiça de falar com as pessoas, escutar música deitada no chão. Quando percebo já estou lá, estatelada. Ele não vai me ligar, e eu não ligo. Vai achar que é jogo isso que eu estou fazendo, sem saber que essa coisa enroscada no meu DNA não tem nenhuma expertise em competição de ego. Eles especulam, eu esqueço. Claro que se o telefone tocar eu atendo, se ele estender a conversa para nossas preferências musicais vou me animar e me mostrar simpática, mas isso é outra coisa que só reparo quando já passou, acho uma grande bobagem e desligo.”

Vira o trailler no cinema acompanhada de Eduardo, que quase nem falou nada antes de passar o braço por detrás do banco, escapando para os ombros dela. Também foi em silêncio que começou a olhar pra Luisa, sem desviar, e tanto, e com uma veemência que nada ela podia fazer senão retribuí-lo com um beijo. Não achou estranho, nem ele.

“Quando eu gostar de alguém vai ser tão forte que não vou agüentar. Já namorei uma vez e escrevi uma carta dizendo que, se ele morresse, morreria junto – puro gracejo. Acho que o que eu quero ser é muito diferente do que eu sou, mas a vontade e o fato irrefutável não se cancelam assim tão fácil, vão se percebendo, revelando-se nas brechas das coisas que faço, me fazendo parecer uma louca.”

O aparelho embaixo da Tv fazia um barulhão enquanto lia o cd, mas era bom sinal, o único que garantia o funcionamento do velho eletrodoméstico. Ele que já havia feito Luisa morrer de vergonha inúmeras vezes, quando precisava voltar rapidinho pra locadora e tentar trocar o filme que seu DVD recusava-se a reproduzir “Vou comprar outro semana que vem, juro”. O dono fazia uma cara torta, porém interposta pela simpatia dos obesos. Dizia que era bom que aquela fosse mesmo a última, e Luísa punha-se a escolher o novo filme, agora sem pedir nenhuma dica, discretamente.

“E quanto mais louca, mas pareço encantar quem a mim não interessa. Minha honestidade é tida como voto voluntário de indiferença, acham que eu dou uma de cética niilista. Não é nada disso! É vontade de dormir mesmo, é não ter o mínimo interesse nas coisas que para as outras pessoas são engraçadas – eu rio de cada história triste, é tão estranho. Não sei se preciso “ser” sem pensar, ou caprichar para “ser” muito pouco. Prevejo o que eles querem ouvir, mas não me agrada essa listinha onde vai se ticando as atitudes básicas, até o momento onde os dois possam dividir de um triste pleno conhecer. Primeiro encontro: jantar, pedir salada, falar pouco da vida, não dramatizar a situação com a mamãe, talvez citar uma ou outra coisa engraçada. Segundo: entrar no carro um pouco menos feliz que da última vez só pra testar a reação, ficar mais séria e parecer um pouco mais inteligente (nunca entrar em política, não leio jornal há meses). Penso demais, penso demais...”

Despejou o conteúdo do saco na bacia verde, voltou pra sala já enchendo uma mão de pipoca, fechou a varanda, colocou a legenda e áudio em inglês pra não perder a fluência, lembrou um pouco mais de outras poucas coisas, não parou de chover, o telefone não toca, o filme começou.

(Thiago Cunha)

22.9.05

Se Eu Fosse Um Padre


Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,não falaria em Deus nem no Pecado— muito menos no Anjo Rebeladoe os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:nada das suas celestiais promessasou das suas terríveis maldições...Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,desses que desde a infância me embalarame quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —um belo poema sempre leva a Deus!

(Mario Quintana)

A vontade de escrever ultrapassa todo o niilismo colegial que venho sentido. Sentado na frente do computador (mais romântico seria uma velha maquineta), você olha pra tela branca do Word, a barrinha branca piscando no que viria ser o começo de sua história, e tudo passa pela cabeça. Um começo forte? Um quote famoso antes de se iniciar um ensaio charmoso e filosófico?

Por alguns instantes, enquanto assistia a um filme, pensava na vida de uma senhora que havia visto hoje pela manhã. Ela andava calma pela praça, e o ficou fazendo por muito tempo, às vezes andando bem depressa, às vezes quase parada, seus sapatos eram bem polidos, de coro marrom. Exercício não estava fazendo. Talvez pensando em algum filho distante, quem sabe preocupada com o veredicto de seu último exame e já se preparando para discordar veemente de seu médico: “Mas doutor, bem agora que ando saindo e dando minhas andadinhas?!”.
E disso poderia se discorrer uma história não muito longa, que se ateria muito à ilustração. Seu desfecho seria algo engraçado como o seu amor por sal no arroz e feijão e o terror que seria se o doutor, por ventura, o cortasse do cardápio.

Na volta passei por ruas próximas, do lado de casa, mas onde nunca antes estivera. Os guardas em suas cabines me olhavam, desconfiados. Eram bonitas e grandes as residências - pensei comigo sobre a real importância daqueles senhores de bicicleta e apito as defendendo. Antes de sentar no computador também pensei em uma dessas casas, uma de estilo rústico, degraus de tijolos, muitas plantas, trepadeiras bem podadas ao redor de batentes de portas e janelas. Seria a história de uma mulher, mas essa um pouco mais nova. Uma mulher que agora deu pra duvidar de sua beleza, olhando com desprezo os editoriais de auto-ajuda nas revistas que assina. Rosana, ou Lúcia, ou Angélica, ou Marisa teria manias, como a de sempre acompanhar o trabalho do jardineiro e nunca, nunca se esquecer do jornal do marido, mesmo ele quase nunca lendo. Seu carro seria preto, tipo caminhonete, com uma cadeirinha suja das bobagens que seu filho come. Sua profissão seria tradicional, no seu escritório guardaria fotos da família e do cachorro na tela do computador e grudadas com imã nas paredes da baia. Mas o fim disso também não é promissor. Aliás, retiro isso que disse, toda história pode ser promissora.

A dificuldade é de se escolher tema plausível de espanto, de reflexão. Por isso , por falta de imaginação, um pouco de covardia e uma necessidade urgente de esvaziar a cabeça que resolvo estender as mãos à salvadora metalingüística. Sim, porque nada adianta escrever à toa, sobre assuntos de embasamentos temerários, a pairar entre frases ora curtas, ora muito extensas, vírgulas inesperadas, enfeites a disfarçar o oco sobre o que se escreve. Antes escrever honestamente sobre coisa nenhuma.

Agradam-me mesmo as ótimas idéias, e essas quanto mais simples, melhores, idéias imunes ao uso pouco criativo da língua. Tenho essa necessidade muito grande de encontrar idéias, idéias dentro das idéias, felicidades nas coisas mais corriqueiras, e tristeza quando tudo parece certo. Pois, pra mim, a vida nada mais é que um ciclo oscilante, complacente com tudo o que possa vir a acontecer. Dentro desse ciclo, as pessoas se distinguem pela freqüência em que vivem e pelos momentos em que param para assistir a vida. Ando muito observador desse panorama, por isso, e não por qualquer outra razão, agora eu sento aqui e torço pra desamarrar o nó que de vez em quando não te deixa nem viver, nem assistir, tamanha quantidade de informações. Eu vivo agora, desamarrando um nó.

Escrevo com a esperança de uma linha mostrar-me modestamente algo mais importante do que penso, e essa é a mesma esperança que tenho quando pego um livro pra ler. De de repente abrir uma página e me descobrir, mesmo que vivido por outro personagem, em outro tempo, vivendo. Sento hoje, de noite, escrevendo sem nenhum tema, para amanha acordar e tudo parecer um pouco mais novo. Até que novamente tudo se repita, as linhas se encontrem e em conflito façam entre as dúvidas uma amarradura ainda mais firme. Terei de sentar novamente, então, a viver.

(Thiago Cunha)

Pouco Me Importa

Pouco me importa sua inquietação e fácil fluência dos dedos no teclado. Seu texto e ruim. Talvez você não tenha vivência, use sua pouca idade como desculpa. Quem sabe com um pouco mais de leitura, quantos livros você já leu? Aconselho Hemingway bem traduzido, Clarice e muita poesia, de Pessoa, Vinicius, Cecília Meireles.

Não posso veicular esses textos assim, deliberadamente, entre outros nomes tão importantes. Todos velhinhos, alguns até mortos, suicidas. Deixe ao menos o cabelo crescer, mantenha uma barba descomportada e comece a ser um pouco menos verborréico. O texto melhora quanto menos se fala, escute mais, agregue valor às poucas coisas que você diz.


Garoto, seu estilo inexiste, me desculpe. Nada vai me convencer de que essas orações grosseiramente imputadas sejam charmosas. Você não tem “feeling”, até gramática falta em você, “ascender” com “c” precedido de “s” quer dizer “elevar-se”, pelo amor de deus! Elabore suas ilustrações com mais cuidado, o fato de suas imagens serem iguais a de autores renomados não é coincidência, é plágio. Ainda mais quando na cópia nada e aprimorado, plágio de camelô isso que você faz.

Já falaram da pungente vontade de escrever, já falaram de amor não correspondido, de vontade de morrer, de alma gêmea, de coisas platônicas, de tédio, emoção e pensamento. Já falaram de tudo isso. Não posso te eliciar a coisas inspiradoras, você tem de aprender sozinho. Fique só, ouça música instrumental, aprenda a assistir mais, e perder mais do que ganhar.

Fique sem comer por um tempo, esqueça de seus amigos mais próximos e ande bastante. Você nunca vai fazer nada que preste se não tiver como hábito a caminhada, e se no percurso não atentar a todas as pessoas, as mínimas coisas. Se estiver frio, saia com uma malha fina. Ande sem guarda-chuva se chover, e isso tudo não é apenas pra fazer fita, mas pra provocar um incômodo consciente que aos poucos irrita a cabeça e te faz pensar.

Não sei mais o que te dizer, realmente, me alegra sua tentativa, mas suas súplicas me parecem exaustas, e me cansam um pouco também. Existe uma vertente que tem a criatividade como coisa genética. Se não pela hereditariedade, pode ser o sucesso profissional do seu pai que te atrapalha. Acho que a coisa só sai boa quando é uma das últimas que você acredita fazer bem. Você ainda vai poder ser dono de fábrica, executivo de empresa, de qualquer empresa, realmente não sei. Se quiser mesmo voltar a escrever essas coisas que me manda, espere sua cabeça pedir.

Grato.

21.9.05

Pesco Há Tanto Tempo

Dizem não ser bom ganhar o peixe
Pesco há tanto tempo
Sou mais peixe do que gente
Quando volto, tenho medo
Pesco há tanto tempo
Que hoje já nem me gabo pelo tamanho
Do peixe que deixa o profundo oceano
Se debatendo, barco a dentro
Estou sozinho no barco
Exímio pescador aventureiro
E nem me dou pelo que faço
Pesco há tanto tempo
Já tive cações nas mãos
Mas nada como, cansado, ter-te no peito
Pesco há tanto tempo
Repetindo comigo a mesma canção.

(Thiago Cunha)

16.9.05

Mundos

Meus devaneios aprimoram-se com o cansaço
Estico a vontade de dormir até ao ponto
De, tão mais cochilando do que acordado,
Fazer da faísca do que penso o começo do sonho

E de pensar em natureza e pessoas nas ruas
Vivo o infinito de um mundo meu
Um pequeno bando de pícaros ateus
Vagando entre espaços verde púrpura

Acordo, uma vez ilusão
Posto-me mudo por curto momento
Torço (até rezo) também em silêncio
Pra logo vir sonho em outra versão

Nao sei como pro mundo todo dia regresso
Se quando abro os olhos ou de noite, quando os fecho
Só sei que são meus, de pessoas e ruas
E um tanto mais felizes quando pícaros verde púrpura.

(Thiago Cunha)

10.9.05

Vou-me embora pra Pasárgada



Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro bravo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito a beira do rio
Mando chamar a mãe-díágua.
Pra me contar histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóides à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
Lá sou amigo do rei
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

(Manuel Bandeira)

5.9.05

Não Chore

Não chore meu bem, vai passar
Mal você sabe o quão grave isso fica
E quanto pior, melhor ainda
Para seu pranto, aos poucos, secar

Não ligue pra isso, querida
Já foi, talvez se repita
A tristeza só fica
Até outra chegar

Me dê sua mão
Vem decretar esse dia domingo
Aprender sobre as coisas que não são
Com seu vagabundo assumido

Trânsfugas, essas coisas
De ventrículo pra ventrículo
Entre as esquinas do coração

Existem tantos caminhos
Largue minha mão
Você já está sorrindo, não chora
Meu bem, a emoção é o pensar arrependido.

(Thiago Cunha)

4.9.05

Outra Noite


Outra noite
Outro sono
Como se eu sonhasse o sonho
De outro dono
Outro fumo, uma outra cinza
Outra manhã

Mordo a fruta
Outro é o sumo
Ando pela mesma casa
Com outro prumo

Outra sombra, outono
Chuva temporã
Será que já não vi
De modo impessoal
E em tempo diferente
Um dia estranhamente igual

Dias iguais-- avareza de Deus
Passando indiferentes
Por estranhos olhos meus
Outros olhos
No teu rosto
Vou falar teu nome
E já teu nome é outro

Outra bruma
Sombra de outro sonho, alguém
Na manhã de junho
Outono, outubro, além.

(Chico Buarque)

Menina Que Bebia

Conhecia uma menina que bebia.
Mal se dava conta, quando alterada, de linearidade de seus dentes, molares e caninos, desperdiçada em todos os sorrisos inadimplentes.

Conhecia uma menina sorridente, que beijava todos os amigos, com preciosos beijos no canto da boca.

Sua conduta simpática e espartana nos impedia de cogitar qualquer outra coisa. A menina, de caipirinha, de chopp dos outros, de marguerita, era tão minha quanto de todos, sorrindo pra uma câmera que nunca estava lá.

Vestia-se de preto, falava de funk a Chico, sem ordem, sem lógica. Assistia cinema mudo, beijava de boca inteira moleques inteligentes e feios, bonitos e burros, tudo junto, suprida da própria certeza.

Sorria cínica, amava torta, a menina que bebia sóbria, quase mais que todos os moleques. Tava na moda deixar o cabelo crescer, manter a barba meticulosamente mal feita e sustentar um ar de sério, mas ela não sabia de moda, ela não sabia de nada (apesar de acreditar que ela já sabia de tudo).

Até que eu, “sortudo”, a beijei. Também de boca cheia, também de mão na cintura e outros pensamentos presos na cabeça, mas convicto de que era uma menina bêbada.

(Thiago Cunha)

Eu Te Amo

Existem um milhão de sorrisos no mundo. Cabelos, idênticos, esvoaçando pelas janelas do carro. Quantas pessoas, por genética ou treino, sorriem desse jeito, como você...Existem milhares de pessoas, espalhadas nas varandas, quartos e ante-salas, e palavras a serem ditas por cada uma delas, em um milhão de línguas diferentes. Existe também o silêncio entre as palavras, e os infinitos modos de se ficar quieto. Existem frases fáceis, de pouco verbos e muitos substantivos, e as difíceis, que dão vontade de ligar e reivindicar uma tradução logo depois de ter batido o telefone.
Muitas pessoas, agora, estão pensando em outras, num silêncio que nunca vai ser transcrito em nenhum dialeto, em qualquer tempo, no mundo inteiro. Pessoas que gostam de outras pessoas, tanta gente e escolha espalhada no tempo. Muitas delas, em algum aspecto, e isso talvez seja umas das coisas que ninguém sabe explicar, se parecerão com você. Sua boca, o modo que você olha e como faz tudo ficar engraçado, enfim, existem pessoas com seus defeitos e virtudes, apenas não estão todos juntos.
Isso me chateou por um tempo, essa possibilidade infinita de se sentir curioso por outra combinação de feições e trejeitos. Sempre que te via acionava-se em mim um apurador de tempo, projetando em gráficos geométricos e com legenda a chance de que poderíamos ser felizes para sempre. Ficava aflito, por mim e por você, com essa mania de pensar demais, inventar e fermentar problemas. Mas você então deu um sorriso, virou um pouco o rosto, afinou a voz e disse: “Quê! ?”, e tudo que passava pela minha cabeça teve que esperar.
Todo dia com você é gozar da esperança de algo que, de tão certo, parece não necessitar de torcida. Mas mesmo assim te olho, e as lágrimas que de mim nunca conseguem sair regam na alma essa ponta latejante de vontade. A vontade de querer estar com você e poder conversar sobre as coisas banais que eu insisto em dar importância, olhar para seus olhos e assistir você zombando de mim quietinha, com a maior paciência.
Uma coisa que eu tinha muito era paciência, deixar as coisas correrem ou simplesmente interceptá-las, deixando que o tempo depurasse qualquer possível resquício de lembrança. E eu queria te dizer isso à muito tempo: “Eu não tenho medo do tempo com você!” Fazem meses que ele só serve pra medir a saudade que me dá quando estamos separados, e quão boas são as horas em que estamos juntos. Existe um milhão de maças no mundo e talvez eu não possa mesmo fazer de nada o que eu penso ou quero uma verdade eterna. Só queria lhe dizer que, na minha cabeça dura, você é a pessoa mais importante que já me apareceu, uma maçã que me faz querer chorar, que me entende e que consegue se impor às minhas idiotices (mesmo comigo não arredando o pé). Eu, como ninguém, sei que o tempo pode mudar muita coisa, e talvez esse seja o medo que eu tenha. Não quero que mude! O que eu posso dizer, com todo meu coração e a minha cabeça, é que eu te amo, de todos os jeitos possíveis.

(Thiago Cunha)

Para Uma Menina Com Uma Flor




Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque que você acorda tarde e gosta de brigadeiro: quero dizer o doce feito com leite condensado.
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque quando você sonha que eu estou passando você p/ trás, transfere a sua ddc para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo p/ cima, como uma santa moderna e anda lento e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.
E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pagem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz; e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim pra ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente sozinha e perdida no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seu lhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E pôr que você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que eu estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.
E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim pôr ela, a mão no queixo, a perna cruzada triste, e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita p/ você, " Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, se por acaso você não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando aquele pedaço em que digo que você "tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois."
E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonhas - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão presciente de Guinard; e o meu coração põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que já tive, e você é filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinalda; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobre tudo porque você é uma menina com uma flor.


(Vinícius de Moraes)

Noite Escura - 2002

E cai sob o crepúsculo
Uma noite tão imperdoavelmente escura

As mães põem-se a acolher seus filhos mais cedo às camas
Apesar de que fariam por eles mesmos
Já que o silêncio dominara todas as suas risadas em volta do campo

E nessa noite ninguém ligou a televisão
Nem se amou sob o pretexto do frio
Simplesmente apreciaram, acompanhados de chá
Aquela escuridão atulhada de sentimentos

Que pela falta de barulho se indefinia no pensar
Tornando o sigilo ainda maior
Trazendo as mãos a se encontrarem e apertarem-se forte
E as crianças dormirem plenas, um cochilo profundo sem sonho.

(Thiago Cunha)

As Boas Coisas da Vida


Uma revista mais ou menos fívola pediu a várias pessoas para dizer as "dez coisas que fazem a vida valer a pena". Sem pensar demasiado, fez essa pequena lista:
- Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrfa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.
- Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de umas cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.
- Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para seu lado e, de repente, dar um chute perfeito- e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro.
- Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.
- Aquele momento que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade- ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.
- Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustação da carne - a mulher que não te deu e não te dá. essa amaldiçoada.
- Viajar, partir...
- Voltar.
- Quando se vive na Europa, voltar para Paris; qaundo se vive no Brasil, voltar para o Rio.
- Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte - o assim chamado descanso eterno.

(Rubem Braga)

3.9.05

Amor Perfeito - 2001

Se quiser ser feliz
Amando alguém senão você
Se desprenda, primeiro, de qualquer sentimento

Faça correr impassível o pensamento
Que, quando ativo, te engana
E faz sublime algo que tal rótulo não merece
Algo que insiste em perpetuar em frívolas novelas
E que, ralo, é regido não pelos astros ou flechas
Mas pela epiderme

Foi o que fiz, e te digo: Foi bom!
Nunca chorei e pude morrer tantas vezes
Pequenas mortes de satisfação

E suor, e champagne, e tudo que isso adiciona
E tranqüilidade, e mentira
Milhões de olhares a tona de minha satisfação
Eu sou sapo, eternamente são
E todas minhas Cinderelas estão entorpecidas.

(Thiago Cunha)

Garota, Menina

Garotinha de conversas inflamadas no computador, o que fazes agora na sua labuta incansável e cheia de histórias? O que fazem suas histórias que tanto enfeitam seus dias, ecoam e somam à outros, o que fazem com você? Eu ainda sofro de hipocondria ou grave doença cardíaca, acho um milhão de coisas bobas, ainda tenho dificuldade em gargalhar e dormir e sempre acabo gastando demais com bebida.
Garota alegre e de vida fácil, onde está você agora pra amenizar a incógnita de tudo que eu faço, você entre elas a que menos me trazia dúvidas. Onde está você? Quero te explicar um filme, quero te encher de argumentos - ou de dúvidas, já que é de meu feitio apenas omitir, sempre -, quero pegar na sua mão e te ver sorrindo, como que pegar na mão fosse o mais sublime possível, entre a fila do cinema e o acento apertado.
Quero passar levemente a mão entre seus cabelos enquanto chora por uma tragédia qualquer, pra você tudo é tragédia, peça motriz de tragédias e amores fulminantes a sua cabecinha. Quero você garota, menina, que é como você gosta de ser chamada e para cujo título tem todos os méritos. Te quero como remédio.

(Thiago Cunha)

31.8.05

O Opiário



É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente...

...Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso.
Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?...

(Fernando Pessoa)

Tadinha da Zuleide

5:30 da tarde, Zuleide entra no ônibus sem nenhuma sacola. Era uma das únicas que não carregava nada, bolsa, sacola, pacote, pochete, carteira, nada, excetuando o cartão vale-transporte que tinha acabado de conseguir e que mostrava com orgulho ao cobrador: “-Tem que encostar ele aqui ó”. Zuleide, sem perder a compostura, encostou o cartão junto à máquina até escutar um apito. Pronto, que susto, saldo: 45 reais. Ela tinha esperado meses para isso e agora que estava de folga pôde fazê-lo, juntar todo o dinheirinho guardado e encher aquele cartão de créditos. 45 reais, parecia um sonho. Aquele era o segundo ônibus de Zuleide para casa e por isso, antes dos 45 reais piscarem no visor, três zeros a assustaram: 0,00. “Mas que engraçado”. Por um instante Zuleide esquecera de todas as explicações da atendente e das suas horas de tolerância entre um ônibus e outro, passando os próximos minutos gozando da sorte de terem esquecido de cobrar sua viagem.
Zuleide era moça de baixa estatura, de quadril largo porém visivelmente mal nutrida. Comia pastel e bebia cerveja quase todos os dias, talvez uma explicação para sua mulatice desbotada, impossível de definir se as manchas eram as partes escuras ou claras, tamanha imperfeição e variedade das cores. As dobras do pescoço, por exemplo, eram escuras, enquanto sua palma da mão era clara, estendendo sua tonalidade pelo antebraço até tornar-se bege na altura do cotovelo. Sua face e ombros, talvez ainda pelo pastel e a cerveja, eram cobertos de pintas. Algumas protuberantes, gordas pintas penduradas em sua pele por minúsculos apêndices, como se dela estivessem se desgrudando.
O ônibus naquele horário estava lotado, mas Zuleide já estava acostumada, ainda mais hoje, sem nenhuma sacola e toda cheia de si mesma. Gostava dos assentos do fundo, onde dava para sentir cócegas na barriga, e não demorou nem um minuto para abrir caminho entre todas as cinturas, coxas, peitos e bundas, e chegar até lá. Durante o curto percurso parecia não ser a mesma pessoa, quem via de fora nunca iria notar – seus olhos eram os mesmos, sua expressão triste também -, mas por dentro daquele corpo diminuto (daquela cabeça desproporcionadamente grande) ocorria uma explosão, figurada apenas pelos movimentos curtos de seus membros ossosos. Seu semblante permanecia intacto, Zuleide mantinha sua cara de invisível, mesmo com toda a nefasta alegria que sentia e as risadinhas presas entre os pensamentos.
“ Quer sentar?”- um homem gordo suando às bicas a perguntou. Ela, depois de jogar um olhar para todos os que pudessem ter escutado tão oportuna oferta, disse sim. Uma mulher sentada no banco ao lado indignou-se e parou o assunto religioso com a amiga para ressaltar que o coitado do homem é que deveria estar sentado, mas nisso ele já estava de pé e Zuleide quase toda acomodada.
A doméstica então aprumou-se no plástico duro e reparou muito simpaticamente no homem que havia lhe cedido o lugar, até que ele desceu, e seu entretenimento passou a ser o de apreciar suas formas crescerem no espelho olho-de-peixe. Tadinha da Zuleide...

(Thiago Cunha)

A Razão de Se Viver

A Razão de ser viver
Habita o crepúsculo
Quando quase nos damos por certos

Até que anoitece
Alguém interrompe o silêncio
Tocando o sino da porta

A novela começa
Ao se deitar, tarde da madrugada
É presenteado com um sonho

Desponta na janela a claridade de outra manhã
À tarde brota a pergunta
As plantas do quintal não param de crescer
Seus filhos são os amores de sua vida
E é noite de novo.

(Thiago Cunha)

Os Ombros Suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundoe ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond)

O Tempo Vai Passar

O tempo vai passar rápido como sempre fez
As noites cairão sincronizadas ao acender de abajures e televisores
E de repente será dia, haverá fumaça, e o acordar precederá o cansaço

As pessoas vão sair de casa, andar na rua, olhar uma para as outras de vez em vez
Apanharão o metrô, lotado
Entre apitos e “entre e sai” de mais pessoas, elaborarão sonhos dos mais fantásticos
Das coisas que já viram na vida

Pensarão no ser amado, mesmo que ele não corresponda ou até exista para compartilhar tal sentimento
E imaginarão que ele alimenta um pequeno animal, afável e peludo
Ou qualquer outra imagem que invoque ternura em sua concepção

Não quero restringir as paisagens apaixonáveis, só tenho essa idéia muito atrelada à admiração
Também perdoem-me os solitários resolvidos, céticos libidinosos e mutilados do amor
Mas cismo em dizer e acreditar que, com tantas pessoas imperfeitas, tanta vida e fantasia
Nada haverá de ser totalmente ridículo, ou tão sublime e lógico que transcenda a paixão

Que nos torne ilesos às coincidências, às fraquezas (até as da carne, por que não?)
E depois de entregues a elas, nos prive do ciúme, insegurança, tentação

E quando você cede, quando acontece, é ponderar
Muitas vezes, depois disso, você talvez passe a sonhar menos no metrô
E seu devaneio flutue vazio entre canos e cimento detrás da janela
Porque você, depois de tanto tempo, de tanta gente, encontrou o seu amor

E não é vazio, nem ruim
Apenas é, isento de esperança e imaginação
Pronto pra ser explorado, passível de ser largado de lado
Pra que você sonhe novamente

O tempo vai passar
Existe muita gente, todas apaixonáveis
E o tempo vai passar.


(Thiago Cunha)

O Tempo Ganha de Mim

O tempo ganha de mim, minuto a minuto. Os sensíveis toques dos ponteiros, bruscas mudanças de luzes e números no visor digital, nenhum deles me passa desapercebido, no entanto todos passam e, com inefável rapidez, o tempo me supera.
Se me pedissem descrição ou devaneio mais plausível, diria que é como embriaguez, que começa com goles de cerveja, depois água ardente e termina deixando escapar uma lágrima. Isso que sinto pode igualmente ser descrito, de forma mais simples, como a paz fria de alguém que sabe algumas coisas, enfeita com artifícios as que desconhece e dorme em paz com sua ignorância.
O caminho está traçado, todas as possibilidades e estratégias delineiam-se em perfeitos traços pretos no branco de minha inspiração, mas o tempo ganha de mim, eu estou em paz e espero.

(Thiago Cunha)

Boa Balada

Passava por mim a pequena placa magnética empunhada pelo segurança. Apita, era meu molho de chaves, mostro o chaveiro com a bolinha de tênis pendurada e sou cumprimentado com: “Boa balada”. Quase sempre é igual, você sente um cheiro de cigarro com o qual logo se acostuma, só provando mesmo do seu veneno no dia seguinte, quando a calça jeans infestou o quarto, o jogo de cama e o cobertor guardado. As pessoas estão quase sempre felizes, algumas juntam seus créditos para comprarem garrafas inteiras de destilado, outras preferem limitar-se às periódicas idas ao bar, para repor sua latinha vazia de cerveja. Sobre a música, prefiro que seja boa nas primeiras duas horas, para que nas próximas apenas ecoe em meus devaneios embriagados com um sonzinho animado.
É, é preciso estar bêbado. Vodka com coca vem sido a escolha mais eficaz e econômica. Destilados fazem mais do que relaxar a boca e soltar palavras de um raso inconsciente, destilados fazem com que você ria no meio do beijo da desconhecida, simplesmente pelo fato de você nunca saber como aquilo foi acontecer. Te permitem pequenos segundos de completa lucidez, fazendo-te passar por louco porque a conversa logo volta às mais inacreditáveis bobagens, e a menina dá risada, pega a sua mão e a comprime contra a sua cintura. Grava-se então o número na agenda do celular, o nome da garota seguido pelo do estabelecimento.
No outro dia, além das reclamações da sua mãe pelo mal cheiro das roupas e da vontade de beber água, figurará em sua cabeça a imagem daquele sorriso abstrato. Abstrato porque, considerando a bebedeira, a menina já era mais o que você queria que ela fosse do que ela mesma. Às reais qualidades são adicionadas outras, que seja uma vozinha rouca, um mal humor imperceptível, fazendo da reles “Dani Festa do Edu” tema de sonhos acordados e destino de mensagem de celular por uma semana inteira.
Qualquer percalço nessa curta jornada de checar a verdade (sempre existirão, vários) pode pesar mais de um dos lados. A Dani pode se fazer de desinteressada na provável próxima vez que saírem, e isso renderá a insegurança do conquistador e uma mensagem enviada por ele à “Isa Juquey”, que parece estar sempre disponível e simpática.
O contrário também acontece, talvez a Dani tenha um péssimo hábito de dar risada de tudo, o que mudaria toda a história e talvez até seu nome na agenda do celular: “Dani Mala”.
Enfim, o ciclo não é mais duradouro e complexo que isso. As coisas podem funcionar, e calculando as determinações bem “por cima”, a resposta positiva viria de um cruzamento das matrizes: “amigos no orkut (ou falta deles, já que ser blasé virou um cartaz legal)”, “aparência física (ou “fofura”, quando a simpatia se sobrepõe)”, “número de vezes que faz rir”, “número de vezes que diz alguma coisa que o outro não sabia”, “estilo (o que inclui vestimenta, postura, uma certa indiferença, mesmo que proposital)”, “que faculdade faz (análise essa com um fundinho monetário) ”enfim, tudo o que é vital para um relacionamento estável e tranqüilo. Sendo essas informações levantadas por ambas as partes e entre elas houver acordo, aí já é outra novela. O mais provável é que a agenda continue crescendo.

(Thiago Cunha)

Dança na Varanda

Um passo de cada vez
Sinta o vento
Ao passar entre seus pelos
A acalmar a tensão de seus trejeitos

Olhe pra lua, sempre ajuda
Agora pra mim
Se entregue, deixe-me a conduzir

Incline-se um pouco mais
Sorria, onde está sua expressão?
Não se prive da sensação
De ser invejada por tantas janelas
Nunca abertas, mas acesas
Essa luz que nos rodeia

É paixão, estou certo
Ou não estaríamos na varanda
O céu não estaria aberto
E a inveja não seria tanta
Das janelas, pela nossa dança.

(Thiago Cunha)

Um Amor Enigmático (é o que eu quero)

Quero uma moça de sorriso simpático
Dentes perfeitos, belo corpo
Mas séria e de casaco
Um amor enigmático (é o que eu quero)

Quero uma menina bonita sem querer
Que tenha lido vários livros, mas que não tenha assunto
Uma mulher capaz de ir do céu ao obscuro
Numa fração de segundos

Que não negue sua estrela
Mas que também não a perceba
E que cante desafinada, mas com tal delicadeza
Que faça do “tom” um irrelevante artifício

Quero uma princesa possível
Comunicativa, porém solitária
Uma garota qualquer com ar de apaixonada
Esperando ter, finalmente, a menina de seus olhos parada
A fitar um único alguém

Quero uma menina com muita melanina
Mas que use protetor
Uma sincera de sorriso sádico
Carrancuda de olhar desamparado
Um amor enigmático (é o que eu quero).

(Thiago Cunha)

Esperança - 2002

Esperança é não saber
E esperar, torcendo

Não se dar por querer
Nada de muito trabalhoso
Esperança, um fio de sonho doloroso
A incomodar

O que você é de fato, hoje
É sempre quase o que Deus te prometeu
Sempre um pouco da vela que ascendeu
Sempre quase

Suas roupas, seus amores
Sempre parte do filme que assistiu
Um pouquinho do galã que sucumbiu
Ao olhar de uma mulher
Bem mais bela que você
Esperança, do que você podia ser

E ao contrario da felicidade, que não tem começo
A esperança não tem fim
Futuro imperfeito
A certeza de um tempo
Que quando chega já é velho
Outra vez

É o que te faz viver
Sem nem saber porque
É o que te faz acordar
Faz o dia amanhecer
Esperança...

(Thiago Cunha)

Tudo um Grande Desperdício

Que no começo de um sono enfadonho
Uma lira aguda venha me obstruir e abrir meus olhos
Fazendo com que tudo seja ao menos compreensível
Que a verdade seja palpável e visível
Flutuando entre todas as conversas, ligações de telefone

E assim acorde, numa mesa de bar
Pensando em alguém que talvez nem exista
Mas que seja tão presente e falante
(No meu pensamento ou em alguma outra mesa)
Que não me deixe mais pensar

Que eu acorde e veja a vida bem mais fácil
Não só com os olhos, mas com tudo o que há de ser sentido
Nesse caminho oblíquo que insistimos em seguir
Para, enfim, nos encontramos pais e trabalhadores
Sorridentes e catalogados

De repente acordar e me ver cansado
De correr atrás de mais tempo pra ficar parado

Embriagado pelo amor
Louco, mas com cautela
Loucura bonitinha de novela
O marido que morre tísico
Com metade de um sorriso
Olhando pela janela

Mão apertada por algum parente
Que desmarcou um compromisso
Para o adeus condolente do ente querido
Vidas e vidas, reuniões, filhos, amor, imóveis, inquilinos
Metade de um sorriso, tudo um grande desperdício.

(Thiago Cunha)

Falta Alguma Coisa

Falta alguma coisa de bicho em mim
Em um canto de minha cabeça
Que se estenda pelas veias e se instale
Por todas as partes da minha emoção

Falta parar de pensar
E topar com a verdade em toda esquina
Falta dançar carnaval, dizer que te amo e te empurrar na piscina

Falta ser, eu pra você
Um amor que dure
Sem perguntar
Um buquê sem cartão
Mas que já diga tudo

Falta um abraço depois de você chorar
Sobram palavras, linhas de pensamento que eu tenho que cortar
Falta careta, risada, piada, beijo, de todos os jeitos

Falta um buraco no meio do dicionário
Falta algum erro lunático ou embriagado
Na viga mestra da minha razão

Falta você, sobra você
Dentro de tudo que é certo ou não.

(Thiago Cunha)

Soneto da Pobre Alma Feliz

Abrasa as suas vontades
As tantas coisas sem escolha
E a pressa que todas
Imprimem em sua verdade

O frio na espinha
A falta de sono e sonho
Problemas pendurados como adornos
Na sua humilde gargantilha

Apertando-te o pescoço
Por onde o ar já passa esquivo
E já nem pensas mais nisso
Por terem prioridade os outros

O dono da venda, a meretriz
A pinga e o parco carinho
Miúdos remorsos reunidos
Numa pobre alma feliz.

(Thiago Cunha)

Me Ensina

Papai, as cores marrons do seu dia
A fricção de seus sapatos
No chão do seu trabalho, aquele barulhinho

Mal você chegou, atrasado ou não
E quanto já tempo fazia!
Aquele cheiro de cachimbo...

Você andou escrevendo (não foi?!)
Aquelas coisas que fazem a mamãe chorar
E você cair numa risada tímida
Papai, não entendo

Você sempre faz isso, tava escrevendo não tava?
Me ensina!

Porque eu te vejo e sinto muita coisa
Da minha cabeça, do meu corpo inteiro
Mas nada parece com você
E o cheiro que você só tem de tarde

E com quando abre seu sorriso
Que não é bonito nem feio
Mas que me mata de saudade

Eu não leio Papai, você sabe
Mas é isso que te faz ser assim (é sim!)
Isso que você escreve
E que a mamãe esconde de mim.

(Thiago Cunha)

Sim

Que fossem flores aquilo que você me deu
Ainda sim, com muito afeto, lhe resguardo minhas dúvidas
Mesmo sendo de flor a forma de tudo o que você sente
Te vejo somente como minha, forma única de você

Que consegue com frases me ater
A um pensamento divergente
Guiado por todas as suas palavras
E eu, de repente, me vejo com os adjetivos
Com os quais você já me puniu e presenteou

Me vejo com seus olhos, pisco com seus cílios
Vejo só o que você me permite
Divago com o que de você passa desapercebido
Uma subjetividade clandestina que me enfeitiça por não ter você

Por me deixar perdido
Te esquecer e depois te querer mais
Lembrar que você já me tem
Que está diluída em mim na mistura mais salubre

E uma noite você diz que me ama
Eu gozo da existência da reciprocidade que antes me afligia
Minhas dúvidas diminuem e ainda te quero
Com a certeza de que trocamos os olhares certos

Uma manhã você não diz nada e eu já sei
Você quer estar ali pra sempre
Me pergunto se eu também faço parte de você
E calada, só com o olhar, você diz:
Sim.

(Thiago Cunha)

Longa Francês

Te amo com câmera de filme europeu
Com toda a subjetividade de um ponto branco no breu
Te amo com as rugas de uma foto em B
Com a fumaça do chuveiro
Com barulho de talher
Com o salmon do azulejo

Te amo do jeito que você quer ser
Diferente de todo mundo
Do jeito que esquece
Os nomes dos seus amigos

Te amo com todos os sinônimos que ninguém conhece
Com versos de poetas malditos
Livres e brancos
Com refrões de cantores nunca antes ouvidos

Amo todos os seus cigarros
Toda lágrima do seu pranto
O seu cabelo desgrenhado
Sua aura de cinismo

Teu contentamento mudo
Todo o seu ódio contido
Num rosto tão puro e branco

(Thiago Cunha)

Mosca

Havia dezenas de passarinhos sobrevoando a varanda do meu apartamento aquele sábado. Eu, bebendo um vinho barato e tentando presenciar algo interessante nas janelas dos outros prédios, demorei para perceber a presença de uma mosca no parapeito. Bichinho que instantaneamente foi digno de toda minha consideração.
Onde já se viu? Arriscar suas poucas horas de vida – não sei se ela era das espécies que só vivem 24 horas – naquela “barra pesada”. Ficava estática, esfregando as patas umas nas outras. Tão calma que até a mim ignorava. Eu, humano de vivência e cérebro avantajado.
Minhas tentativas de aproximação eram ridiculamente fáceis, o que deixava sem propósito qualquer ensaio de homicídio. Ela era a Gandhi das moscas. Pássaros, humanos, nada a abalara, seus olhos já eram arregalados de nascença. Talvez já tivesse amado, tivesse provado seu valor e naqueles minutos – eternos minutos – refletisse. Talvez ela fosse superior a tudo isso, talvez vinte e quatro horas fossem um martírio e nada mais valesse a pena a não ser vivenciar a chance de encurtar sua via-crúcis. Fitou-me pela última vez e partiu, superior entre os pardais. Ainda não sei se era recém-nascida ou idosa, hedonista convicta ou conservadora perdida, sei que era uma mosca e que com certeza ria de mim.

(Thiago Cunha)

Eu Sempre Vou Te amar

Eu tenho você no pensamento durante quase todo dia. Não estou pedindo nada em troca, nenhuma satisfação, só queria que soubesse. Queria que soubesse que você era o começo do meu plano e ao mesmo tempo ele inteiro, meu ridículo plano de finalmente gostar de alguém. Você seria, entre as outras, aquela pela qual eu era devoto, todos os seus defeitos seriam como deslizes dos deuses, remediados sempre com um ato sublime, e suas risadas iriam transcender a visão e esconder-se, durante dias e semanas, nos sonhos dos quais ninguém gosta de acordar.
Sentiria por você algo muito forte, talvez até forte demais, mas que sairia de mim em doses homeopáticas e, tranqüila, você não perceberia meus exageros. Te ligaria muitas vezes sem razão, desligaria me questionando sobre a reciprocidade de tudo isso quando você dissesse que não podia falar, que seu patrão estava lá perto, e passaria o resto do dia chateado, pensando no seu sorriso. Voltaria a te ligar de noite e você, agora desocupada, falaria uma hora sem parar e me faria pensar que talvez eu devesse estar louco, que nada poderia ser tão bom assim.
Iria lutar contra minha tendência à solidão com todas as forças. Freqüentaria os lugares mais chatos, conheceria e seria pelo menos um bom ouvinte de seus amigos, tudo para sentir seja isso o que for que todo mundo (todo mundo!) sente. Você era o meu plano inteiro, mas acho que acabou não dando certo.
Eu te beijei como todo mundo, sem ao menos te conhecer direito. Você também, como todo mundo, disse que não acreditava que aquilo pudesse estar acontecendo, enquanto eu passava a mão no seu cabelo e o jogava para trás de sua orelha. Mas não sei, talvez porque eu já tivesse esse plano na cabeça ou simplesmente por eu ter gostado mesmo de você, achei que seria diferente.
Tudo em vão. Quando eu te vi pela última vez eu percebi, era tudo em vão. Você até esboçou um sorriso, a gente conversou bastante, uma conversa diluída em simpatia e pequenas confissões, mas nada demais. Eu torcendo para que as poucas cervejas que eu pude comprar fizessem efeito, que a conversa fosse aproximando nossas bocas e culminasse num beijo, que depois dele você fizesse uma “carinha” tímida e corresse para o seu amigo, que voltássemos a conversar e que o segundo beijo fosse bem mais natural e consciente, tudo em vão. Você quis ir embora cedo, ficava brava quando todo mundo deixava a gente isolado no canto. Me deu um beijo de tchau: “A gente se vê.” Abortei meu plano.

(Thiago Cunha)

Ah de Mim

Ah de mim

Ah de nós que de tudo sabemos um pouco
Reconhecemos pela parte um todo
Que se figura como triste constato

Ah de nós, pseudo-intelectuais
Que não somos inteligentes, mas quase
E guardamos a dor pungente de saber, simulando, muito mais

Um feixe de breu penetra suas janelas com clareza
E deixa esparramar na sala-de-estar a certeza
De que o operacional é do amor ao parafuso
E do naco doloso já não deriva cabal corrupto

A subjetividade tem a verdade como brinquedo
O perdão, ainda sem o mesmo aval de cruzes e penitências, nunca foi tão aceito
E a impunidade veste, de fininho, a carapuça da misericórdia

Sim, porque caso não seja por misericórdia
É coisinha besta que todo mundo esquece
O que não sei se é aptidão ou fardo
E entre todas essas coisas do saber e da memória
Ando aflito por saber o que deve ser lembrado.

(Thiago Cunha)

A Poesia

A poesia nasce espetada pra fora. Sinto isso, como um cordão de sunga empurrado pela agulha, uma coisa que irrita se não sair. A agulha, na poesia, um estado profuso de sentir ou várias doses etílicas.

A poesia usa de alguns sinônimos, usa entre verbos pomposos substantivos muito simples, e torna-se serena. Orgulha o autor os segundos nos quais o leitor faz uma pausa, fecha o livro entre o dedo na página marcada, e olha por instantes o andar corriqueiro das pessoas.

A poesia de amor costuma usar o diminutivo, quando entregue totalmente à emoção, mas fica também muito bonita honesta, ponderando entre os prós e contras.

A poesia fala da vida também, muitas vezes da sua pouca importância, e nessas horas imagino o humilde autor debruçado na varanda de uma casa de campo, cuja a altura mal lhe quebraria as pernas caso tomasse coragem e pulasse. Degustando do gelado da brisa na noite quente, da lentidão das folhas das árvores, todas emaranhas pelo álcool transitante no sangue e pensamento.

Essa poesia, ponta de vida, testamento, carta de suicídio, irá então ser lapidada pelo mesmo artista, dia seguinte, porém com a lupa de quem sabe que aquilo foi apenas uma espetada mais chata e urgente, entre esfregões carinhosos na cabeça dos filhos.

Equilibra-se então seu conteúdo, e a pergunta egoísta de antes estende-se a outras vidas e momentos. Troca-se “mulher” por “pessoa”, “eu acho” por “dizem”, e sublima-se a linguagem universal adornada pela assinatura rabiscada.

Pessoas poderão recitá-la no Natal, crianças se alegrarão ao entende-la em parte e logo dirão que gostam, dirão que é isso que querem ser quando crescerem: poetas, escritores.

Quando realmente forem grandes, porém, descobrirão o velho livro na gaveta de sua mesa no escritório, na mesma página, e pensarão que talvez seja tarde. Tarde demais para confessarem-se espectadores da vida, além de vivê-la, o que é inevitável e simples.

Uma dessas crianças crescidas, surpresa pela constatação, se permitirá meia hora de descanso na praça durante o almoço, quando avistará ao longe o poeta pagando a conta de luz.

(Thiago Cunha)