10.11.06

Kurik-Kurik


Era para ser de cinco minutos o banho, mais foi se prolongando com as fragrâncias e cremes que ela costumava comprar, todos com nomes de frutas que ninguém imagina que possam existir. Não vinha a foto na embalagem, e por um tempo criou-se nela certa curiosidade, até que esbarrou num frasco que caiu, entrou shampoo no olho e já pouco importava se era Nispolero ou Madreño o que esfregava e depois deixava agir na cabeça por dois minutos.

Vestida e ainda perfumada, sentou a frente do computador pra pesquisar sobre os dois. Ela, uma jovem corretora de imóveis e os dois, pássaros que pareciam papagaios, ou pelo menos era o que todos se contentavam em dizer quando os viam pra lá e pra cá, mas que ela teimava que não.

Acontecia que a casa onde passava as tardes não valia o preço que o proprietário pedia e do qual não abria mão. E não havia esfregada no chão, não havia explicação sobre o curso do sol na vista da janela da sala que adiantasse. A missão de vendê-la tinha sido lhe dada a título de merecimento pelo ótimo trabalho em um condomínio luxuoso de apartamentos, porém a fama de vendedora perspicaz, que antes lhe acompanhava abrindo portas e encurtando seus turnos, agora começava a adormecer com ela, sozinha na mesa improvisada no centro da sala fria.

E por isso, aturdida pelo questionamento de seus dotes, Julia nunca iria apenas chamá-los de papagaios. A casa não tinha banheira, nem a piscina cascata. Os azulejos eram tão antigos que já não se podia argumentar um charme remanescente por conta de nostalgia. Se ao menos fossem portugueses, mas não. As cortinas empoeiradas nem eram reconhecidas como tal, e de tanto a perguntarem sobre a necessidade de uma lona atrapalhando o sol, Julia um dia as removeu uma a uma, o que pra ela só fez ressaltar as marcas de massa corrida, resíduos da exposição de muitos quadros que ela imaginava terem sido tenebrosos.

Mas era nesta casa e em nenhuma outra que os dois pássaros verdes pousavam, ora na varanda do quarto de casal, ora em uma haste propositadamente mantida no jardim. Eles não falavam, mas via-se que com alguma dedicação o fariam. Resmungavam barulhos distintos que se repetiam e organizavam-se conforme o humor dos dois. Muito inquietos, talvez duas fêmeas maduras e invejosas, dois jovens se xingando perenemente, não se sabia.

Para a pesquisa, Julia munia-se apenas de sua intuição e da ciência absoluta do tom de suas penas, amarelas abaixo do bico e laranjas na cauda. Procurou pouco e já logo achou os dois, que muito diferentes do Papagaio Verdadeiro, dizia o site, tinham um canto de “kurik-kurik” e chamavam-se Papagios do Mangue. “O Papagaio do Mangue vive nas matas no litoral atlântico e chega aos manguezais. Pode ser encontrado na Colômbia, Venezuela e Guianas até o Paraná, oeste de S.Paulo e Rio de Janeiro.” Na argumentação que Julia já ensaiava, São Paulo foi vetado, e logo depois o Rio. Somente referências internacionais seriam dadas aos questionamentos sobre a procedência dos dois, o que aumentaria o mistério. “Não me pergunte o por quê, mas são lindos, não?..”, dizia ao espelho, sorrindo.

Os três continuaram a conviver na casa. Todos os nomes de árvore foram catalogados, procurados por ela em bibliotecas. Seu pouco salário era gasto em capachos, cortinas mais delicadas, com bom acabamento e preço justo. Pendurou um dia qualquer gravura de Van Gogh, usou um produto diferente que tirou o preto das entranhas dos azulejos do banheiro.
Os papagaios, um mês e tanto depois, cantavam Marina Lima tarde afora, comiam mamão, e a ânsia de vendê-la ia dando a casa um aspecto convidativo de mulher nova e feliz, bem como Julia gostaria que fosse a sua. Certa vez, sem a autorização do chefe, levou para casa um pretendente com o qual assistiu a filmes e escutou música. Fizeram caipirinha de frutas quase tão raras quanto as de seus shampoos e ela, embriagada e contente, sentiu-se dona da casa que não viria a ser de ninguém.

Em um dia onde caía uma garoa chata e os pássaros não soltaram um som, ela já nem mais se dedicando aos discursos persuasivos alternativos, chamaram-na ao escritório central onde lhe passaram novo itinerário. A casa teria sido negociada com uma grande construtora que a arrematou à vista. O coração de Julia apertou. Visitou pela última a construção supervalorizada que a casa voltava a ser. Triste, recolheu o quadro, as cortinas e pôde escutar baixinho o “kurik-kurik” dos papagaios, procurando um imóvel à altura, agora em outro bairro.