Não me Deixe Escolha
"Não me deixe escolha e perseguirei toda pequena tarefa como presa a ser abatida e devorada. Peço que o faça, em preces agnósticas, antes que me consuma o estudo das possibilidades. Pelo amor de deus."
"Não me deixe escolha e perseguirei toda pequena tarefa como presa a ser abatida e devorada. Peço que o faça, em preces agnósticas, antes que me consuma o estudo das possibilidades. Pelo amor de deus."
Odeio os nomes Jacu- Pêssego, Anhaia Mello, Radial Leste e outros tantos que sobre a situação do tráfego o rádio insiste em reportar. São nomes pra mim tão burocráticos. Cheiram a diesel, chovem, alagam, são nomes que devem vestir a camisa com 4 botões abertos, usar um escapulário antiqüíssimo perdido em tufos de pêlos grisalhos, fumar charuto, trabalhar em uma rede atacadista rodeado de caixas, caminhões, frente a um computador com a tela negra e letras em verde néon.
Devem dirigir carros dos anos 90, pendurados em multas. Aos finais de semana bebem muita cerveja, compram-nas às caixas, sentam-se à TV por horas abraçados em um balde de tremoço e torcem grosseiramente para um time lutando contra o rebaixamento.
Esses nomes são cobertos de cimento, que esquenta no sol escaldante e assola as borrachas dos pneus. Um cimento que cria aquaplanajem e faz estacionar os motoqueiros temerosos no acostamento. São nomes por onde se passa e não se mora.
E o rádio toca seus “techno beats” meio aos impropérios dos ouvintes. Radial Leste parada, Avenida do Estado intrafegável, e ficam todos apreensivos, e todo mundo esquece do Gil, do Caetano. Vem o helicóptero com as opções de atalhos para fugir do congestionamento. Todos preparam-se para dar a seta, aquela chuva, aquele calor, tanto motoqueiro, um caído. Vai, vai meu filho. Bandeirantes? Não, desce a Vereador e no Cebolinha você tenta pegar a 23. O Eusébio disse que subiu a Brigadeiro em 20 minutos, a Jusséia estacionou em uma padaria do Jardins porque por lá não tem condição. O cara do rádio anuncia o caos como que narrando o páreo final de alguma corrida atravancada de jabutis.
E então uma primeira pessoa acha muito prudente buzinar. Uma outra concorda, ainda mais enfática. E aquela centopéia monstruosa fica balançando seus gomos sem quase sair do lugar. Todos sintonizados no uníssono esganiçar de repórteres estagiários.
Olha...isso tudo para dizer que eu gostei da rádio OI, também da Mitsubish. E descobri as duas em uma mesma avenida que, não me lembro o nome, foi andando, andando, até que eu cheguei em casa sem nenhuma artéria entupida e sem ter visto nenhuma veia de São Paulo explodir, como prenunciava o locutor.
E cabe aí um conselho lógico: Se todo mundo for obedecer o radialista e procurar rotas alternativas ao mesmo tempo, basta ficar na mesma avenida, curtindo um Caetano.
Eu escrevo sobre emoções retrógradas de um coração trabalhador. E quanto mais fumaça, mais cor eu vejo, mais fácil eu choro.
Eu escrevo triste, e a tristeza que motiva também facilita minhas felicidades instantâneas cada vez mais freqüentes. E quanto mais triste, mais só, melhor administrada é a felicidade que sinto, apurado o ângulo da câmera, até nesse cenário inóspito, nessa solidão irremediável, no fundo dessa garrafa vazia.
Adianto meus pesares nostálgicos ao teorizar que, inevitavelmente, não me arrependerei de nada. Sou feliz por saber que terei saudades.
Não precisa gostar-me de fato
Tão inconteste
Assim irrefutável
Basta calar-se, não dizer mais nada e vir comigo
Não precisa ter conhecimento de meu passado afetivo
De minhas façanhas monetárias
Ter fotos minhas de quando criança
Já está bom assim, com o sal a estralar em seu sorriso de praia
Eu não peço, por isso você também não cobre
Caída a tarde laranja é provável que eu beba
Errependa-me de tudo
É provável que me descubra outro
E que falte a memória recente
De meus amores menores.