30.10.05

Copo Vazio



É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar

É sempre bom lembrar
Guardar de cor
Que o ar vazio de um rosto sombrio
Está cheio de dor

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor
Que a dor ocupa a metade da verdade
A verdadeira natureza interior
Uma metade cheia, uma metade vazia
Uma metade tristeza, uma metade alegria

A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar

(Gilberto Gil)

Cidade Grande

A cidade grande nutre na maioria das pessoas o sonho de, no meio de tanta gente, conhecer alguém que faça o resto desaparecer. Os quilômetros de lentidão nas marginais fazem com que muito do que era pra ser conscientemente gasto com a troca do carro, presente pra mulher e outras coisas que juntam dinheiro pra ter dar nas grandes cidades, seja aplicado em viagens pouco planejadas pra praia e hotéis fazendas. Lá as pessoas das grandes cidades se divertem, bebem vinho, e se prometem que irão começar a juntar pra uma casa no campo.

Você sente mais das grandes cidades quando utiliza o transporte público. Metade das pessoas dorme, porque é cedo e no contrato consta: 8:00 às 17:00. No trabalho, meio às coisas que eles já fazem por anos, pensam sempre em alguém e dá saudades. Não precisa estar longe para ter saudades na cidade grande. Basta cruzar a pessoa duas vezes sem cumprimentar, esquecer de perguntar como ela vai ou se tem alguma novidade. A cidade faz o resto, até você sentir a saudade estranha de alguém que senta ao seu lado.

Quem vive em cidade grande tem milhões de possibilidades. A princípio as pessoas ficam muito contentes com suas escolhas, mas depois, como se tivessem pago por elas, se arrependem e perguntam-se se não acabaram levando só por causa da promoção. A cidade grande, invariavelmente, passa a impressão de que tudo tem preço.

Pessoas das cidades grandes alugam filmes e choram, ou riem, porque fica cada vez mais difícil fazer isso sem nenhum pretexto. Acontece sim, mas de supetão. Na cidade grande, as emoções parecem sintomas de doença de fundo nervoso.

Come-se muita pizza e a expectativa das férias, caso houvesse como medir, seria a mais pesada, a mais alta de todas as outras localidades. Porque o túnel inunda, porque ele viu um assalto à mão armada bem lá na frente e ninguém fez nada. As ondas do mar são mais poéticas, o campo traz uma paz maior, o axé fica menos bobo pra quem é da cidade grande.

O domingo é angustiante am qualquer lugar. Na cidade grande o domingo é um senhor ranzinza e rancoroso, que escolhe a grade de programação das tvs, faz o dia durar menos, lota todas as salas de cinema e, quando muito afetado, faz chover. E nesse dia dá vontade de ligar pra um estranho, dá preguiça de fazer churrasco, e chora-se muito, um choro curto que não sabe ainda se é nostalgia ou medo do futuro.

Na cidade grande as pessoas lembram cada vez menos dos seus sonhos. O sonho é sempre acordado, uma equação de juros compostos, de DRE projetado. Alguns parecem ignorar o stress e o café, e dizem que sempre sonham com gente voando e com beijo, mas esses são poucos.

Quem mora em grandes cidades acorda cedo, trabalha muito, dá uma passada no “happy hour” e dorme com a impressão de que esqueceu alguma coisa. Ajusta o despertador, dorme de lado e com travesseiro, lembra de quanto o médico disse que é bom dormir, mas não lembra do sonho, não lembra.

(Thiago Cunha)

27.10.05

A Menina e o Passarinho

Amanda pediu que eu comprasse um pássaro branco, que já estivesse cantando, de preferência canário. Periquito não canta, mas disse que também podia caso as manchas fossem bem pequenininhas, branco de manchas azuis.

Fui à loja que me parecia mais honesta. Na verdade tinha ido a outra, um enorme galpão, moderno e iluminado, onde bichos escondiam-se assustados na gaiola, na mira de centenas de prováveis donos e toda aquela alta voltagem de luzes frias néon. Os peixes eram excepcionalmente impassíveis, fazendo a única cara que sabiam fazer.

Enfim, não gostei, já me tomara muito tempo a reflexão sobre o paradoxo da liberdade, a gaiola, instinto, asas. E retiro o que disse, não procurei a loja por economia e sim por romantismo.

Fui parar em um estabelecimento que parecia ignorar todo consenso de layout e atratividade varejista. Um lugarzinho apertado, cheio de penas, onde quem ousava entrar era recepcionado por olhares enviesados de frangos criados soltos.

Quase todos os pássaros expostos não estavam a venda. Ou eram do patrão, ou estavam doentes, ou só procriavam porque eram fortes e cantavam bonito, e minhas esperanças iam minguando ali, meio ao cheiro de jiló. Até que, dando mais uns três passos eu vi, escondido entre galos e pombos, o pássaro branco, canário e à venda.

- Já está cantando?

- Tá. Disse o atendente dando um tapinha em um dos cantos da gaiola.

- Quanto?

- Sessenta reais. Oitenta com a gaiola.

Achei caro...

- E é de cativeiro?

- Quê?!

Bem lacônico pra vendedor...

- Nasceu na gaiola?

- Isso não sei, não.

Saí desconfiado sobre a procedência e duvidando da qualidade vocal do bichinho, mas certo de que Amanda iria gostar.


***


Me escondi depois de tocar a campainha, do mesmo jeito que sempre fazia.

- Olha Amanda, o passarinho!

Queria que o bicho desse ao menos um “pio” em sua apresentação, mas permaneceu estarrecido. Nem se deu ao trabalho de fechar o bico, que mantinha aberto desde que entrou no carro.

- O moço disse que canta. Deve estar nervoso.

- Ah, tio. É muito bonito. É lindo mesmo assim! – disse, já chacoalhando as mãozinhas, sugerindo que lhe passasse a gaiola.

Pôs-se nas pontas dos pés, apertou os lábios pedindo um beijo e, mal eles soltaram de minha bochecha, já perguntou por um prego.

- E já sei onde vai ficar, lá na varandinha do quarto. Assim ele me acorda, aprecia a vista e canta com os outros passarinhos. Será que passarinho na gaiola fica triste vendo passarinho solto?

- Acho que não, passarinho não fica triste nem feliz.

- Que mentira, claro que fica, senão não cantava. Ele canta quando está feliz. Ou quando voa. Acho que passarinho de gaiola só tem meia felicidade.

Me intrigou a profundidade de suas conclusões. Há pouco tempo (muito pouco) tudo o que ela fazia era perguntar (muito).

- Fica tranqüila Amanda, não existe felicidade inteira.

- Ah tio, você diz isso porque canta muito mal e não sabe voar.

E disse com uma tranqüilidade, com um desprezo tão sereno, que só me restou perguntar pelo martelo.

(Thiago Cunha)

15.10.05

A Casa Amarela

É uma casa construída em pequeno terreno, mas que ascende em diversos patamares.

O pai acabou de construir, em cima da última laje, um espaço para secar a roupa e fazer churrasco. O filho pediu um puxado lá em cima, para levar meninas e olhar estrelas, o pai disse para ganhar dinheiro e erguer o inferninho ele mesmo.

A casa de um amarelo horrível escolhido pela mãe tinha varandas de peitoris vazados, sustentados por pequenas colunas clássicas dos preguiçosos gesseiros de hoje.

A sala era habitada por um televisor grande, orgulho do pai, pousada sobre um paninho de crochê bordado, obra da mãe. O filho se esparrama no sofá e de tanto o fazer já criou um buraco onde apóia a bacia. A mãe sempre pede pro pai pra repor a espuma, que conhece gente do bairro que faz barato, parcelado.

O pai trabalha, o filho acha que é muito novo e a mãe nunca trabalhou.

Tem um carrinho bem cuidado na garagem que daqui a seis meses o filho vai poder dirigir. O pai está preocupado.

Um portão novo, grande e de madeira protege o carro e a família. Quem passa só vê o amarelo do muro, escuta um sambinha que a mãe deixa sempre ligado lá atrás e repara na melada mão de verniz no portão. O pai passou o verniz, a mãe gostou.

Ontem teve visita, uma tia veio. A mãe arrumou o banheiro porque a ela foi dito que este é o cômodo que as pessoas mais reparam. Prestou atenção na tia quando ela pediu licença da mesa e foi pro lavado, fazia mesmo barulho de armário lá dentro, na certa a tia bisbilhotava a marca do papel.

O frango da mãe é bom, todo mundo adora quando tem. O filho anda saindo muito, o pai falou que vai lhe cortar as asinhas, domingo é pra comer em casa.

O pai leva tudo muito a sério, o filho acha tudo uma grande besteira e a mãe quer é que tudo acabe, pra assistir a novela em paz.


(Thiago Cunha)

6.10.05

O Amor Morreu

O Amor morreu. Foi, como elefante idoso, desfruir sozinho de suas tenras lembranças. Diziam que sua trajetória lhe resguardava ainda muitas alegrias, enganaram-se.Tédio, amigo recente porém muito próximo, disse que Amor andava amuado, que não via razão nem porquê.

Sobre suas últimas palavras, nada se sabe. O falecido não tinha inimigos, uma ou outra briga com editores de revistas masculinas e advogados matrimoniais, mas nada que justificasse seqüestro ou homicídio.
“Há tempos proferia maluquices, impassível, bebendo feito louco, não sei se para comemorar ou aliviar a tristeza”, disse uma das testemunhas ao juiz, mas não precisaria. Um minucioso laudo médico constatou a morte por inanição: “Amor realmente deixou-se ir”.

Vagou por dias por acostamentos de movimentadas estradas, sem ao menos tentar pedir carona. Certa tarde adentrou terreno árido e, no meio da noite fria, sozinho, sobre o clarão da fogueira de livros e fotos, sucumbiu ao que lhe consumia e não tinha nome.

Seu enterro foi simples para despistar a imprensa. Como não tinha família, foi escolhido um cemitério qualquer, em uma simpática cidade do interior. Apenas amigos mais próximos e grupos de jovens pseudo-hippies atenderam à cerimônia.

A perda já toma conhecimento internacional e suas conseqüências são visíveis; Excluiu-se em definitivo a determinação latente de se formar família para crescer na empresa e começa hoje a construção de uma grande muralha nas delimitações da Amizade. De agora em diante, todo olhar entre duas pessoas de sexos opostos é lascivo e o número de filhos já é quase equivalente às ações movidas no PROCON contra as fábricas de preservativos.

O novo ocupante do cargo ainda está sendo prospectado, mas é sabida a intenção da bancada em eleger Tédio, dizem que por sua integridade e inteligência emocional.

Façamos um minuto de silêncio.

(Thiago Cunha)

2.10.05

...

Nada existe de tão importante, outro que as coisas sem importância nas quais cismamos em acreditar. Por favor, hierarquizem minhas possibilidades.

14-2-1933


Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afetos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

Irreversível

As coisas irreversiveis me deixam tenramente amuado. Contemplo com tristeza sua importancia e as diversas maneiras com que sao superadas, por pior que sejam, por motivos que ninguem conhece. Obesos não fazem esteira e, aos domingos, permitem-se grandes diversoes "para comer na hora". Hoje já existem ácidos dedicados a peelings dermatológicos, cirurgia de redução de estomago... Talvez todos estejam esperando para, quando se acharem irreversivelmente feios, voltarem-se as elas. Riem então, cultivando amizades, torcendo para que as com o sexo feminino tranformem-se, no decorrer de confissões e apelidinhos, em um grande amor indiscutivel.

Carecas vivem momentos mais delicados. Depois que começam a cair os fios, o processo só tende a intensificar-se, o que garante as suas vítimas a concepção da triste imagem de seu coro cabeludo todo desmatado e as piadinhas que terão de decorar para amenizar o problema. Eles então se dedicarão ao máximo aos exercícios anaeróbicos, tornarão-se amigos de freqüentadores de academia, gastarão mais com perfume e talvez até troquem de carro.

Os filhos dos dois, porém, serão tratados com a mais frouxa hierarquia, e do careca ou do gordo virá amor paternal de esfregar a cabeça e torcer euforicamente na partida de futebol. Não acaba aí, não quero ser hermético, mas não é ai que acaba. Uma das mulheres irá se dedicar a exercícios, eventualmente. Nas suas coxas irão se delinear o esboço de músculos que, além de fibras bem nutridas do corpo, culminarão em discussões eternas e na maior eficácia do marido em reuniões e projeções de “budget” para os diretores da empresa.

Sim, porque não se deixa uma mulher embelezada assim, solta, sem nenhum respaldo. É preciso, na presença da careca ou da pança, uma postura etérea. É necessário um carro de motor possante, preto, mensagens bem elaboradas por mulheres de igual beleza no celular. É preciso, indispensável, é regra.

Depois disso completo deitam-se em redes, com seus corpos relaxadamente mal cuidados, na praia, gordos e carecas, coniventes e conformados, sentindo o sol que nada custa.

(Thiago Cunha)