30.11.05

O Dia Preferido

As roupas estavam quase todas secas no varal. Cantavam baixinho os pardais, como que quisessem dormir e o instinto não deixasse. As ruas do bairro arborizado eram visitadas por seus primeiros pedestres, os postes irrigados pelos cachorros deles.

No supermercado, ainda fechado, senhoras enfileravam-se prazenteiras para a aula de yoga. A moda começou como uma grande rede. Tida como idéia brilhante pelos noticiários, logo se disseminou entre as médias seguidoras até finalmente chegar no pequeno Mercado do Afonso. Diz o dono ter descoberto que, ao iniciar a aula todas as quartas, no dia do sacolão hortifruti, meia hora antes da loja abrir, as velhinhas não só criavam vínculos com o prédio mais antigo do bairro, como também tornavam-se diretamente responsáveis por três quartos da venda de hortaliças no dia.

Maria era aluna ferrenha de Sr. Hitashi, também senhor e que restringia ao nome suas raízes orientais. Seu maior hobby era o de beber cerveja e comer toicinho, o quanto podia, no bar do Renã. Falavam que tinha puxado o pai, da mãe só herdara a simpatia e o bom coração.

"- Estica Glória, vai até o fim. A dor é fraqueza saindo do corpo." A senhora ria, apoiando no meio da coxa a mão que devia estar no chão.

O professor ria junto, tomava nota dos conselhos experientes sobre benfeitorias de cada legume, cozido, no chá, misturas de fruta. Era ordem do Afonso, "Deixa as velhas a vontade". E assim o faziam, o professor e as alunas. Maria, com sintomas avançados de doromania, trazia sempre uma lembraça para Sr. Hitashi, e o remédio irrestível para a frustração afetiva do professor era a queda livre de Maria para o fundo das lojas de "apenas 1,99".

Ao abrir o freezer das bebidas isotônicas, já depois da aula, a senhora ressequida sentia-se novamente úmida e jovem. Como sempre fazia e já preocupava a família, comprava quitutes, um para cada, excetuando os netos que ganhavam coisas sortidas, entre doces e quinquilharias baratas.

"Quarta-feira é gostosa porque tem aula, porque a gente conversa com as amigas e o Edmundo pode ver aquele programa chato na Manchete sozinho. Ana Maria é bom, claro que eu gosto, mas depois que aprendi a gravar no vídeo, vou treinar com o Sr. Hitashi sem remorso. A aula é ótima, lava a lama, tira a modorra, aquele mercado é tão bom. Tem tudo que a gente quer, e bem de quarta, quando eu começo a me preparar pra receber a Ritinha, o Matheus, o Joca e as crianças. Ritinha só come banana de fruta, e no Afonso tem umas ótimas. Hoje comprei Gatorade....vão rir de mim. O gosto é ruim mesmo, esse negócio de atleta."

Ia seguindo, remoendo suas futilidades idosas entre os passarinhos, andando risonha, vagarosamente. A quarta-feira, que fosse por estratégia de marketing ou pura poesia, era bonita, seu dia preferido.

(Thiago Cunha)

No Meu Pensamento

Precede meus dias um momento solitário, de olhos abertos, sozinho, acordado, quando todos pensam que estou dormindo. Nesta hora, olho para o feixe de céu entre as construções e vejo algo tirlintar na cadência do piscar das estrelas, e dezenas de rostos me passam pela cabeça, também nesse jogo de luz, lembrando-me das pessoas da minha vida.
As pessoas da minha vida dormem tranquilas, elas tomaram chá no momento delas de preceder os dias. Existe o sonho, entre essa ocasião e o barulho do despertador, mas não os ouso imaginar, mesmo porque saber até disso seria um carma enfadonho, pra não dizer fatídico.
Recolho-me então aos poucos, tento calcular os dias que já não sonho e chego a palpitar que é esse pensamento negativo a razão de estarem quase extintos. Já não me visitam, enquanto durmo, as lembranças da minha infância, o riso da minha avó e o vento que batia na descida da rua inclinada com a bicicleta. E das vezes que acontecem, as raras e singelas vezes, sou expelido como de castigo pro meio da noite, escuuura.
Penso nas pessoas da minha vida como o sonho que já não tenho, e eu de olho fechado as vejo, abrindo sorrisos e expandindo-os, expandindo-os, até lhes fecharem também os olhos. Elas riem e fecham os olhos, tomam chá na noite estrelada no sonho que eu não tenho, no meu pensamento.

18.11.05

Venham!


Venham leis e homens de balanças, mandamentos daquém e dalém mundo.
Venham ordens, decretos e vinganças, desça o juiz em nós até ao fundo.
Nos cruzamentos da cidade, brilhe, vermelha, a luz inquisidora.
Risquem no chão os dentes da vaidade e mandem que os lavemos à vassoura.
A quantas mãos existam, peçam dedos para sujar nas fichas dos arquivos.
Não respeitem mistérios, nem segredos, pois que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte, relógios a marcar a hora exata.
Não aceitem outra arte, que não sejam inquérito, local e data.
Mas quando nos julgarem bem seguros,cercados de bastões e fortalezas, hão de cair em estrondo os altos muros. e chegará o dia das surpresas.

17.11.05

Por Dentro

Existe um prédio dividido em duas partes. Entre elas, um estreito corredor que serve de rota para transeuntes que migram entre as alas. A passagem também é agraciada por uma das poucas janelas do edifício, talvez a única, sobre a qual as pessoas apoiam fingindo alguma introspectiva ocupação. Algumas forjam esquemas infalíveis de coincidência naquele corredor, cruzam suas extremidades já gavionando a cabeça da pessoa com a qual pretende esbarrar e “tum”, “oi”.

Outras fumam com a calma de estrelas de filme europeu, e as últimas, por não terem vício, contentam-se em fabular longas conversas pelo celular. A quase ninguém basta apenas estar lá, entre uma metade e outra do prédio.

Existe uma menina que “vira e mexe” pára no corredor. Destaca-se pela cara de mal-humorada, pela beleza discreta que as pessoas deixam escapar e principalmente por usar, simultaneamente, os dois últimos artifícios de ocupação antes citados. Seu ritual, com algumas pequenas alterações, é o de apoiar-se lentamente na mureta que emboca na janela, caçar o aparelho celular na bolsa, segurá-lo com um dos ombros e logo acender um cigarro com muita destreza. Me pergunto quem é o receptor dessas ligações curtas e em tão religioso horário, e sobre o que devem tratar. Percebo tudo isso nos segundos que levam para atravessar o corredor, porque me recuso a telefonar sem motivo, já tentei fumar e não consigo, me restando ir seguindo, sem ocupação.

Mas essa menina, essa menina também olha para as plantas imputadas no cantinho de cimento no andar de baixo, seus olhos se transformam em globos lustrosos por onde, prestando a devida atenção, se escuta: “mas que judiação”. E essa, entre todas, é a ocupação mais bonita.

Seu ar de comiseração, porém, reserva-se à pequena área verde. No todo a menina é moradora de uma casinha distante, ligada por um caminho comprido de pedras e toda trancada. Por fora, a construção não chega a ser simpática aos olhos, a menina tem a estranha vaidade de plantar alguns botões do lado de fora e, depois de quase crescidos, esquece-los e vagarosamente espiá-los morrer, dia-a-dia, por entre as frestas da janela. E é normal quem da casa não se aproxima. As paredes são de madeira bruta e sisuda, impressão reforçada por grasnidos de pássaros que não se vê, mas soam próximos, grandes e predatórios.

O que não sabem é que lá dentro mora uma menina toda bem prendada, que fica a ler fábulas distantes e dentro delas inventar outras, nas quais viveria entre as flores que hoje a desafiam na fria inanição por falta de candura. A sala é revestida por um polpudo tapete branco onde de noite ela deita e imagina estrelas, entre as quatro paredes que do lado de dentro são claras.

Sai de sua residência só quando muito necessário. Outro dia saiu para abraçar uma amiga que acabara de voltar de longa viagem, outro pra rir, mais por educação que por graça, da piada de um parente próximo. E a mim, que também a espio ao longe, de uma das janelas acesas na noite serena em que a menina vive, essa conduta encanta.

Caso nela não se figurassem o cigarro e o celular, sua casa seria muito convidativa, um barraquinho escancarado entre tantos outros, no mesmo espaço. Prefiro, um dia que tiver tempo, ir pelo caminho de pedra munido de um par de clips e surrupiar pela porta de trás da casinha distante. Visitá-la em todos os cómodos, passar a chave, me trancar por dentro e, por dentro, conhecer a menina.

(Thiago Cunha)

11.11.05

600 reais

Todas as decisões, até as permeadas do mais profundo sentimento, tomadas de surpresa ou calmamente entoadas pelo cantar de passarinhos, todas elas, em certo momento, são convertidas à moeda corrente.

E é confuso tudo isso. Trabalhe-se para ganhar dinheiro. Com ele, nos escolhemos hedonistas: amantes de um chopp com picanha, japonês durante a semana, mãos fechadas: clientes VIP da locadora do bairro, sonhadores perseverantes de uma casa de quintal verde e grande quando já estivermos velhinhos, e no fim ainda nos encontrarmos, mesmo enrugados e incapacitados de fazer amor, pensando em dinheiro.

É confuso tudo isso. Dizem que se deve trabalhar com o que for de gosto, com o que mexa com a alma, anime a cabeça com tal efusão que faça a vida parecer passar bem rápido, com a fluência de seu extrato bancário em paralelo, lívida entre as contas que deduzem seus valores automaticamente. Se for só pelo dinheiro, dizem, é pura frustração e caminho sem volta para stress. Stress, essa definição tão hermética. E caso seja verdade, me pergunto sobre o propósito e a ponta de vontade na alma de caixas de bancos sorridentes, frios cirurgiões e dos carcereiros sob todos os olhares fulminantes dos que cuida.

Você então se fará por não entender, vai torcer o nariz e rir enfadonho. “Não é todo mundo que nasce em berço de ouro”, já posso ouvir, e calma, lhe peço, concordo. Concordo que é preciso, antes de tudo, cumprir o contrato com a sobrevivência. Sobrevivência, tão pouco menos hermética, ainda mais mística quando capitalizada.

É confuso. Suponho então que estas pessoas que trabalham no que não gostam, só por necessidade, pensem bastante em alguma alternativa que lhe renderiam mais prazer e, inevitavelmente, mais dinheiro. Mas o sonho então se calca no gozo bem distribuído em 30 dias ou concentra-se no quinto dia útil do outro mês? E se por desprendimento metafísico e paz capitalista alguém disser que é só pelo dinheiro e pronto, o prazer de usufruí-lo não vem junto? A delícia habita o monte que se junta ou os pouquinhos que se gasta, aqui e ali, no cartão e em espécie, tendo, enjoando, vendo outro, juntando mais. Uma roda intermitente de fisgadas de felicidade, isso é o que vivemos.

É piada comum de veterinário dizer, quando castra o cachorro que nunca havia procriado, que é melhor assim, antes a ignorância que a abstinência. Me agarro nisso então, com o pouco que ganho, meço com um esquadro de 600 reais mensais as delimitações sentimentais da minha alma e torço com olhos apertados para que nunca, nunca venha a, por algum acaso, petiscar em um american bar de hotel 5 estrelas, ou, na sorte de algum código de barra, ser agraciado com uma viagem para país estrangeiro. Ia acabar com a minha paz, sobrecarregar meu coração que já nem imagino como feito de ventrículos e sim dividido entre cozinha, quarto e sala.

É melhor assim, concordo com ele que também deve levar mordidas e tosar por dinheiro. Melhor eu não saber, talvez por me achar inteligente o bastante pra aproveitar de todo, mas muito pouco propenso a me submeter a tê-lo por contínuo. Tudo é proporcional. Tento acreditar nisso, venho tentando. A felicidade e tristeza são garantias das almas e carteiras, cheias ou vazias, e agora penso nessa verbiagem pueril como ridícula.

É ridículo. Cismar no dinheiro é tão tolo quanto inútil. Só me deixe, entre as besteiras de bases frugais, acrescentar mais uma, e aí me vou, contente entre minhas limitações: Nossa vida pende na balança do prato das coisas que queremos e do das coisas que precisamos e, entre os dois extremos, a moeda é a única coisa que parece ter peso. Pronto.