17.11.05

Por Dentro

Existe um prédio dividido em duas partes. Entre elas, um estreito corredor que serve de rota para transeuntes que migram entre as alas. A passagem também é agraciada por uma das poucas janelas do edifício, talvez a única, sobre a qual as pessoas apoiam fingindo alguma introspectiva ocupação. Algumas forjam esquemas infalíveis de coincidência naquele corredor, cruzam suas extremidades já gavionando a cabeça da pessoa com a qual pretende esbarrar e “tum”, “oi”.

Outras fumam com a calma de estrelas de filme europeu, e as últimas, por não terem vício, contentam-se em fabular longas conversas pelo celular. A quase ninguém basta apenas estar lá, entre uma metade e outra do prédio.

Existe uma menina que “vira e mexe” pára no corredor. Destaca-se pela cara de mal-humorada, pela beleza discreta que as pessoas deixam escapar e principalmente por usar, simultaneamente, os dois últimos artifícios de ocupação antes citados. Seu ritual, com algumas pequenas alterações, é o de apoiar-se lentamente na mureta que emboca na janela, caçar o aparelho celular na bolsa, segurá-lo com um dos ombros e logo acender um cigarro com muita destreza. Me pergunto quem é o receptor dessas ligações curtas e em tão religioso horário, e sobre o que devem tratar. Percebo tudo isso nos segundos que levam para atravessar o corredor, porque me recuso a telefonar sem motivo, já tentei fumar e não consigo, me restando ir seguindo, sem ocupação.

Mas essa menina, essa menina também olha para as plantas imputadas no cantinho de cimento no andar de baixo, seus olhos se transformam em globos lustrosos por onde, prestando a devida atenção, se escuta: “mas que judiação”. E essa, entre todas, é a ocupação mais bonita.

Seu ar de comiseração, porém, reserva-se à pequena área verde. No todo a menina é moradora de uma casinha distante, ligada por um caminho comprido de pedras e toda trancada. Por fora, a construção não chega a ser simpática aos olhos, a menina tem a estranha vaidade de plantar alguns botões do lado de fora e, depois de quase crescidos, esquece-los e vagarosamente espiá-los morrer, dia-a-dia, por entre as frestas da janela. E é normal quem da casa não se aproxima. As paredes são de madeira bruta e sisuda, impressão reforçada por grasnidos de pássaros que não se vê, mas soam próximos, grandes e predatórios.

O que não sabem é que lá dentro mora uma menina toda bem prendada, que fica a ler fábulas distantes e dentro delas inventar outras, nas quais viveria entre as flores que hoje a desafiam na fria inanição por falta de candura. A sala é revestida por um polpudo tapete branco onde de noite ela deita e imagina estrelas, entre as quatro paredes que do lado de dentro são claras.

Sai de sua residência só quando muito necessário. Outro dia saiu para abraçar uma amiga que acabara de voltar de longa viagem, outro pra rir, mais por educação que por graça, da piada de um parente próximo. E a mim, que também a espio ao longe, de uma das janelas acesas na noite serena em que a menina vive, essa conduta encanta.

Caso nela não se figurassem o cigarro e o celular, sua casa seria muito convidativa, um barraquinho escancarado entre tantos outros, no mesmo espaço. Prefiro, um dia que tiver tempo, ir pelo caminho de pedra munido de um par de clips e surrupiar pela porta de trás da casinha distante. Visitá-la em todos os cómodos, passar a chave, me trancar por dentro e, por dentro, conhecer a menina.

(Thiago Cunha)

1 comment:

Anonymous said...

Achei muito poético esse texto! Talvez o mais lírico que eu já tenha lido dos seus.
Beijos