24.12.05

Estrela Natalina

Acordou bem mais cedo do que deveria, em uma dessas adaptações de fuso horário. E iria voltar a dormir, caso a vontade de ir ao banheiro não fosse tão urgente. O ranger da porta acordou o cachorro que passou a seguir seus passos vagarosos entre os cômodos do apartamento.

"Quer sair?" Perguntou o dono com suas primeiras palavras do dia, coincidentemente as únicas que o cachorro entendia. Ele andou até onde se guardava a coleira e sentou-se, revezando a atenção entre o dono e a tira de couro pendurada no gancho. Queria dizer que sim.

E foram então, durante a manhãzinha ainda escura, passear. O roteiro foi o mesmo, o itinerário dos xixis e das árvores. Como sempre, as paradas eram freqüentes e exaustivas, mesmo não tendo mais líquido, o cortejo era necessário, o cachorro erguia as patinhas de trás e o dono esperava, por já estar acostumado.

Os sensores de iluminação faziam o passeio dos dois piscar, bem mais amplo e colorido que as árvores de natal que enfeitavam os prédios. As ruas cumpridas e arborizadas formavam um grande pinheiro de luzes seletivas, cadenciadas pelo “clic-clic” das câmeras de segurança. Mas ninguém percebeu, nem o cachorro e o dono, que estavam muito perto, nem qualquer uma das outras pessoas, que preservavam a saúde ao dormir.

Era só uma coisa bonita, entre o claro e o escuro, como tantas outras. O dono outro dia ponderou sobre o verborréico e a introspecção, duas coisas que é, também sem perceber, em tempos diferentes. “Tudo é bagagem, bagagem...”

Das coisas que passam desapercebidas, os sonhos hão de te lembrar. Sonhemos com a estrela natalina.

Façam ou Se Recusem a Fazer


Façam ou se recusem a fazer arte, ciência, ofício. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida espiando amultidão passar. Marchem com as multidões.Aos espiões nunca foi necessária essa "liberdade" pela qual tanto se grita. Nos períodos de maior escravização do indivíduo, na grécia e no egito, as artes e as ciências não deixaram de florescer.

Será que a liberdade é uma bobagem?... Não. A vida humana é que é alguma coisa a mais que ciências, artes e profissões. E é nessa vida que a liberdade tem sentido e é direito dos homens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que há de vir.

(Mario de Andrade)

16.12.05

Velhos falando da Rita

- Já não penso mais nela.
- Que bom.
- Por que bom?
- Sinal de que você esta se gostando mais sozinho.
- Mas quero outra, quero encontrar outra.
- Assim não vai achar nada.
- Assim como?
- Assim, pensando ainda na Rita.
-Mas já falei que não penso mais!
- Se insiste tanto e fica bravo como está agora, pensa sim.

- Ah, me poupe, não quero sermão de pseudo-intelectual, Renato. Você está sozinho por incompetência, e duvido também que haja ideologia no fato de você não ter grana. É incompetência de novo. Não sabe nada dessas coisas.

- Vejo que ainda pensa muito, muito nela.

-Talvez...


- Pois saiba que eu também já pensei, ainda penso, principalmente aos domingos, em muita gente. Mas a tristeza que sinto ao constatar que tudo passa é maior que a advinda da saudade, que vai minguando.

- Tudo passa, isso é verdade.

- Verdade triste amigo. Já passou o tempo em que quis, e pude, correr atrás de dinheiro por meus méritos, assim como vai passar o rancor que eu senti, minuto atrás, quando me ofendeu com o assunto.

- Desculpe. O que sugere então?

- Que faça o que tiver vontade. Mais importante que a coerência é a vontade. Eu, por exemplo, não peço desculpas, não falo que amo e evito elogiar demais. É egoísta, todos sabemos, mas não faço porque falta vontade. Se fizesse, seria pra agradar, ia ficar segurando aquele meu sorriso de foto até finalmente até estourar num desaforo de honestidade, me conheço. Não sei o que faria, por exemplo, se dia desses me declarasse e ganhasse um sorriso de volta. Iria a loucura, o amor envolve muita coisa.

- É…mas Rita é diferente, viu? Muito dela é diferente. Sei que não morreria com a sua ausência, que ver ela com outro seria tanto um choque quanto um alívio. Talvez isso que ainda me deixe nessa angústia, não é? O fato de ainda não ter visto.

- Anda falando com ela?

- Muito pouco. Outro dia ela me ligou, achei conveniente não retornar, talvez por escutar muito você e essas suas besteiras.

- Nunca falei pra não retornar. Falei pra ser honesto. Acho que a monogamia não é só boa pro coração, mas também pra cabeça. Melhor ainda estar sozinho, mas isso vi que o senhor não consegue. Se for sair com a Rita pensando naquelas secretárias do escritório e na última com quem você andou jantando, por favor, não se dê ao trabalho. Ela vai se chatear, o que te deixará feliz por um tempo, mas tratará de esquecê-lo em velocidade alucinante. Deixe-a estar, assim preserva a ternura na lembrança dos dois.

- Então não ligo? Não faço nada?

- Se for tentar levá-la pra jantar e esticar pra algum motel, não. A imaginação dela faz melhor que isso. A não ser que queria se comprometer. Isso de “1 não quer, 2 não fazem” eu não gosto. Conheço a Rita, ela não daria só uma metidinha.

- Olha lá Renato, olha como fala.

- Desculpe.

- Você sabe, o sexo não era o melhor, ela não era a mais bonita. Mas quem sou eu, não é mesmo? Quem sou eu? Agora os cabelos deram pra me deixar de uma hora pra outra. Minha cabeça já reluz sob lâmpada de elevador.

O outro riu, ostentando aquela cara de monge que ele só começou a fazer de 2 anos pra cá.

- Ai, ai Fernando. Pessoa é que tinha razão, quem inventou o espelho destruiu nossas vidas.

- Renato, pára com isso. Eu to falando de coisa séria. Penso em tudo isso que disse, mas é inevitável, por mais que eu ame a Rita, que exista o desejo por outras.

- Verdade. Não ligue então. Se ligar diga isso. Fale que ela realmente está fora do peso, que você está ficando careca, mas que gostaria de vê-la.

- Mas isso é uma loucura que nunca funcionaria.

- Mas que se funcionasse ia te deixar mais tranquilo. Passa também pela cabeça dela, pode estar certo. Você tem de decidir se quer ser bicho ou homem.

- Bicho por gostar de sexo?

- Não, bicho por achar que isso é base de alguma coisa, ou que haja triunfo em ver mulheres diferentes abrindo-lhe as pernas. Acho que existe preço pra isso, 30 reais em casas baratas, chegando a uns 500 nas mais requintadas. Comece a freqüentá-las, sexo é mais simples como valor de troca monetária. Eu mesmo pago, não pra me abrirem as pernas, mas pra não chorarem, não me ligarem, não plantarem em mim nenhuma semente de afeto.

- Pois acho que é você que, desde moleque, nunca esqueceu a Fátima! Ela milionária, você arranjando teorias “milaborantes” para pintar seu fracasso como opcional.

Bicaram na dose de uísque, esperaram dois seguntos para digerir o acesso repentino.

- Deixe eu continuar. Existe também a opção de ser homem. Não se pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. Os que misturam ou ficam duvidosos na escolha, acabam tristes. Por quê? Porque quem quiser encontrar profundidade na pessoa com quem mantém uma amizade futilmente erótica vai se frustrar, assim como quem quiser, de uma mulher companheira, simpática, prestativa e amiga, desenvolver o lado lascivo. Essas relações são inviáveis…a primeira assombra a cabeça, cria as mais assustadoras imagens e desconfianças. A segunda frustra o corpo, e também pega no pensamento, formulando pouco a pouco a certeza de que talvez seu tempo esteja sendo desperdiçado. Eu digo, Jorge: seja homem gratuitamente com alguém que saiba que você paga pra ser bicho. Honesto assim.

- Nunca devia ter te pedido conselho.

12.12.05

O menino

O menino subia sempre o telhado da casinha antiga, e entre os frios da parabólica passava religiosos 15 minutos, todos os dias, enfrentando do frio mais agudo ao mais extenuante mormaço.

- Que é que esse menino faz, Maria?

- Tem saudades - respondia a mulher sem se virar do tanque.

- Mas saudade de que jeito, o moleque nem é gente.

- Pois pensa assim você, que é velho xucro. Ele vê novela, normal é que fique desse jeito, amuado. Deixa.

- Novela, novela, ele precisa é de um cacete que faz tempo que eu não dou - isso falou sem a mínima intenção, olhando pro menino até com ternura.

A mãe, se perguntando de onde ela tinha tirado a lógica entre novela e introspecção, tentava remediar: - Ou é menininha, nessa idade essas coisas são confusas.

- Ô Nega, agora eu que tenho que ser poeta, essas coisas são confusas o tempo todo, até de velho. Mas olhe lá, minha flor, se todo mundo for por aí escalando antena pra pensar em amor, haja viuvez nessa terra.

Maria deu um sorriso que foi adocicando até “minha flor”, pra logo depois ser reposto pelo lábio murcho de esculacho que ela fazia.

- Deixa ele lá Jorge, larga a mão de ser turrão. O menino ta quietinho, daqui a pouco desce, você conhece.

O homem foi andando em direção ao telhado, o menino pressentiu a chegada e logo se recompôs do que for que seja que estava fazendo.

Disse paulatinamente: - Oie!

O pai respondeu com um sorriso que seu espírito enferrujado já não sabia dizer o que era. “Esse tico de gente filosofa, zomba de mim, viaja, volta, vira menino de novo...” Chacoalhou de leve a cabeça tentando espantar o pensamento.

- Oi, pode descer, não quero mais essa brincadeira. Se você, deus me livre e guarde, leva choque ou cai, não sobra nada.

- Está certo, papai - por dentro a criança riu e computou a sexta vez que os dois tiveram as mesmíssimas duas linhas de diálogo.

Andou pelo quintal desviando dos morangos, a mãe lhe gritou alguma coisa sobre aonde tinha sujado aquelas meias, que encardiu e não vai sair. O pai veio logo atrás, já retomado o sorriso.

- Esse menino é meio gênio.

- Você já falou, Jorge.

Senti Saudades

Senti saudades. Hoje já mais nada, talvez esteja fadado a esses sobressaltos levianos. Mas o que ontem me perturbou ainda é fresco.

Foi quando eu comecei a reparar em várias pessoas que isso veio, em especial um casal, que ensaiava as suas primeiras conversas. Era bonito como ele entrava puro, entre cortejos gracejados, constantes mas bem calculados, em parte da vida dela. A porta da menina eram os olhos, que iam cada vez mais perdendo o medo de olhar para os dele. Eles ali cúmplices daquela recepção solene, no auge onde os dois se trancaram em si mesmos num beijo, e eu bravo e curioso por sentir saudades.

A minha saudade foi como que um mundinho visto de longe, mas que ia chegando mais e mais perto, girando, quanto mais fixamente você olhasse pra ele. Vinha rodando, azul, verde, até chapar no rosa da sua casa. E foi tão chata a saudade que me permitia transpor o muro sem que me vissem, os muros, os vidros, me mostrando você a falar ao telefone, receber amigos, pôr a mesa de jantar.

Existe o botão de emergência. Logo após ser comprimido, você é tragado para o mundo recluso de você e tudo que dos outros depende é depurado. Peguei o martelinho e quebrei decidido a pequena caixa de vidro, soou o alarme, mas nada de sair de lá... Era você assistindo filme, escovando os dentes.

E no resto daquele dia, ontem, as pessoas foram as espigas daquela história que modelos e crianças têm como preferida, as ruas o trigal infinito por onde eu passava sorrateiro com a lembrança da minha princesa.

A raposa vadia e rasa que sou eu, que leva chumbo de caipira aculturado meio a impropérios, corre lisa entre armadilhas postadas sempre no mesmo lugar, ontem não encontrou toca alguma, pra fugir ou descansar. Sustentou triste seu pairar randômico, surpreendendo o bando, as apavoradas galinhas, os caipiras e suas espingardas, porque a princesa um dia a cativara, e dela sentia saudades.

(Thiago Cunha)