16.1.06

Vem cá

Venha cá. Sei o que está pensando. Vem cá e deita sua cabeça aqui.

Pronto. Não fica triste, olha lá, olha lá como a noite entra rápido e os barzinhos lotam e os telefones tocam. Olha como se beijam e se riem e falam de cinema e pegam nas mãos uns dos outros.

Não tem problema, se chorar não ligo. Nem conto. Mas olha aí como esse acorde é bonito, como o mundo vai sozinho não deixando que ninguém desista.

Não chora não, vem cá. Te dou bolacha, chá, te faço carinho, alugo filme, ligo pro trabalho e digo que está doente.

"- Pois ele é que estão. Todos eles."

Ahhhh...vem, vem cá.

(Thiago Cunha)

8.1.06

Memória

Vou sempre lembrar de você como minha derradeira felicidade. A título de importância e comparação, claro, pois tive outras.

Andei sozinho por uma cidade desconhecida, descobri as pessoas de lá como muito simpáticas e me embebedei da dose mais certa para aproveitar a brisa do mar que há tempos não sentia.

Conheci outras pessoas, outras mulheres, com as quais tive excelentes conversas, que insistiam sempre em pautar assuntos de meu total domínio.

As mulheres que conheci falavam calmamente ao meu ouvido, frases que sentia serem muito pessoais, como se as tivessem guardado e finalmente alguém, eu, pudesse ouvi-las. Falei no momento certo, deixei o silêncio interromper a conversa no tempo certo, e as beijei também com calma entre os sorrisos espontâneos que o momento proporcionava.

Quando muito inseguro sobre o que acabara de dizer na discussão já etílica entre amigos, um deles me acompanha ao banheiro e elogia minha “corretíssima” colocação. Assim como a estranha se aproxima, bonita, com um sorriso mais esperto que espontâneo, pra dizer que havia me visto na pista, perto do bar, e gostaria muito de ter uma conversa.

Tive essas, outras felicidades que talvez agora me escapem (acordar querendo trabalhar?), mas não lembro de alguma ser assim, em memória, quase tão de verdade, a todo momento, com cheiro e alucinadamente tátil, como a sua. Não como a sua risada, curta, não como o jeito que, depois de eu contar uma história, você já me rebatia com outra, travando um duelo de contos cômicos verídicos. Ninguém ficou quieta como você, nem tão honestamente brava. Ninguém é assim, linda sem se dar a mínima conta.

2.1.06

Seus olhos amendoados transcendem o tempo

“Seus olhos amendoados transcendem o tempo!”, passou pela minha cabeça assim que a vi, postando-se bem a meia altura, frente a frente comigo: Aphonsine, óleo sobre tela, Dama Sorrindo, Renoir. Havia tempo que não sentia tudo o que processo de conhecer alguém podia despertar. Andava sereno entre as obras francesas, pensando muito pouco, pelo menos não em coisas de real importância, quase todo meu pensamento preso no fato da entrada do museu ter aumentado tanto. Também no que tinha escutado em um filme nacional, que o ser humano precisa de pelo menos 5 metros quadrados para não enlouquecer. Tinha visto um mendigo antes de ponderar sobre minha fome e a vontade de ver Van Gogh pela centésima vez e pensei que deve existir, também, um espaço físico limite para a sanidade do homem. O mendigo sentava quase nú, gozando de si mesmo, rindo com seus poucos dentes e falando com alguém que seus copos de pinga ou seu espaço infinito de ruas e praças tinham inventado. Cheguei a apressada conclusão de que as regras são impossíveis de serem quebradas ou ignoradas sem que sua consciência seja comprometida – mendigos e presidiários, por abundância ou falta de espaço, viriam a desvairar.
Bom, mas no meio desse dilema parco de conteúdo apareceu Aphonsine, numa pequena tela adornada por uma moldura de madeira com nuances douradas nas extremidades. Muito formais eram tanto seus trajes quanto sua postura, ereta. Usava algum tipo de tecido bufante por debaixo do paletó azul, mostrando-se na parte do pescoço e tornando a “dama” um pouco mais opulenta e rechonchuda na obra do que deveria ser em pessoa. Seu rosto, porém, foi o que realmente pôs fim a todo aquele meu devaneio. “Seus olhos amendoados transcendiam o tempo”, pensei, comparando-a a Joana. Nem cheguei a avisá-la da semelhança, ela com certeza não concordaria e se chatearia comigo – Aphonsine não tinha nenhuma pose ou estilo -, mas se caso deixasse-me explicar, diria que tanto no olhar quanto na forma dos lábios e nariz, e isso pra mim já é muito, as duas eram muito parecidas. Ali, pintura estática grudada na parede, a “dama sorrindo” levantava suavemente um dos cantos da boca, ao mesmo tempo que fechava seus olhos. Era como uma foto mal batida, uma surpresa, um sorriso ou qualquer sentimento contido – eu sei, esse é o princípio do impressionismo, mas mesmo assim me comoveu. Não planejava em pensar em Joana nas próximas horas, pensava até, entre todas as outras coisas sem importância, em acionar meu corriqueiro plano de se fazer desinteressado e deixar morrer mais um inexperto romance. E de repente aquela pequena tela me aparece e a transforma, na minha cabeça, em uma musa cujo entendimento não deveria ser assim tão simples. A mesma feição, o mesmo mistério dos inquietos lábios carnudos, os mesmos olhos levemente fechados, minuciosamente esféricos. O fundo da tela era todo azul, contrastando com o rosado de suas bochechas, aposto que sua voz também era parecida, seu jeito de segurar na mão, sua risada. Aposto.

(Thiago Cunha)

Amar

Amar é, quando falta assunto, não esperar que o outro diga “eu te amo”
Também não temer que lhe diga que tudo acabou
Amar é, no silêncio, apertar um do outro as mãos até que alguém diga qualquer coisa.

(Thiago Cunha)

1.1.06

Meia-Noite

Neste próximo ano lhe desejo toda a felicidade. Sempre o fiz, mas como a gente fica muito preso às badaladas dos ponteiros, terei o cuidado de desejar mais forte durante o primeiro segundo depois da meia-noite. Vou querer que sua vida passe devagar nos momentos bons, e que esses sejam muitos, pra aumentar o seu prazer e retardar a sua velhice. Que as rugas inevitáveis não lhe afetem ao brotar e serem percebidas pela primeira vez, que sua alma e os caminhos pelos quais andou, tropeçou e quase caiu, estejam livres nessa hora, com vaquinhas a mugir pelo acostamento e a temperatura oscilando entre o calor do fim da tarde e a brisa amena, escoada pelo relevo estrada.

Feliz Ano Novo. Quero que tudo o que dizem sobre os significados das cores das roupas íntimas seja um pouco verdade. E se amarelo for alegria e vermelho amor, quero que vá de loja em loja procurando uma cor derivada dessas duas, para que seus amores sejam sempre felizes e suas felicidades, apaixonantes.

Que o ano lhe resguarde coisas irreversivelmente boas, que as realizações que demandariam tempo aconteçam de repente, e que você tome conta disso a jantar em um restaurante alto, com uma amiga ou qualquer pessoa que possa ficar surpresa e orgulhosa de você. Que no domingo não venha a lembrança da segunda e que você tenha muitas, muitas pequenas tarefas neste próximo ano, para que o fardo maior que às vezes se revela e nos assombra seja anulado pelo término de uma e o começo da outra.

E que as mazelas hipocondríacas de nossa cabeça durmam por tempo indeterminado, um sono que só evoque sonhos bons para amparar seus pensamentos. E que você consiga se transportar pra sua ilha florida com fundinho de samba todas as vezes que desejar, onde estiver, e que permaneça austera e firme com seu sorriso, todos os dias.

Vou querer que tenha sempre um abraço te esperando e que suas risadas, toda vez que acontecerem, ribombem em algum lugar da minha alma, pra me certificar da eficiência dos meus votos.

E se a saudade for inevitável, se perceber que o ano passado superava esse próximo em muitos dias, amigos e amores, não esqueça de me avisar, para que possa desejar melhor e ainda mais forte na próxima meia-noite.

Verde

E quando dos raios
Propagar-se um calor terminal
Condensará o que debaixo é pergunta
Pra subir e voltar água, fria
Certeza entre prismas coloridos

E do arco-íris virá uma brisa chata
Pra depois, novamente, surgir o sol
Calor que fará vibrar o menino
Nessa embriaguez maluca

De não querer quase nada
Além de, suando, tomar a chuva
Reclamar do vento
E esperançar, durante os dias
Cores diferentes

O menino fala
A mãe não entende
Que por ter muita gente
Vermelha, amarela e azul
Ele quer uma verde.