Seus olhos amendoados transcendem o tempo
“Seus olhos amendoados transcendem o tempo!”, passou pela minha cabeça assim que a vi, postando-se bem a meia altura, frente a frente comigo: Aphonsine, óleo sobre tela, Dama Sorrindo, Renoir. Havia tempo que não sentia tudo o que processo de conhecer alguém podia despertar. Andava sereno entre as obras francesas, pensando muito pouco, pelo menos não em coisas de real importância, quase todo meu pensamento preso no fato da entrada do museu ter aumentado tanto. Também no que tinha escutado em um filme nacional, que o ser humano precisa de pelo menos 5 metros quadrados para não enlouquecer. Tinha visto um mendigo antes de ponderar sobre minha fome e a vontade de ver Van Gogh pela centésima vez e pensei que deve existir, também, um espaço físico limite para a sanidade do homem. O mendigo sentava quase nú, gozando de si mesmo, rindo com seus poucos dentes e falando com alguém que seus copos de pinga ou seu espaço infinito de ruas e praças tinham inventado. Cheguei a apressada conclusão de que as regras são impossíveis de serem quebradas ou ignoradas sem que sua consciência seja comprometida – mendigos e presidiários, por abundância ou falta de espaço, viriam a desvairar.
Bom, mas no meio desse dilema parco de conteúdo apareceu Aphonsine, numa pequena tela adornada por uma moldura de madeira com nuances douradas nas extremidades. Muito formais eram tanto seus trajes quanto sua postura, ereta. Usava algum tipo de tecido bufante por debaixo do paletó azul, mostrando-se na parte do pescoço e tornando a “dama” um pouco mais opulenta e rechonchuda na obra do que deveria ser em pessoa. Seu rosto, porém, foi o que realmente pôs fim a todo aquele meu devaneio. “Seus olhos amendoados transcendiam o tempo”, pensei, comparando-a a Joana. Nem cheguei a avisá-la da semelhança, ela com certeza não concordaria e se chatearia comigo – Aphonsine não tinha nenhuma pose ou estilo -, mas se caso deixasse-me explicar, diria que tanto no olhar quanto na forma dos lábios e nariz, e isso pra mim já é muito, as duas eram muito parecidas. Ali, pintura estática grudada na parede, a “dama sorrindo” levantava suavemente um dos cantos da boca, ao mesmo tempo que fechava seus olhos. Era como uma foto mal batida, uma surpresa, um sorriso ou qualquer sentimento contido – eu sei, esse é o princípio do impressionismo, mas mesmo assim me comoveu. Não planejava em pensar em Joana nas próximas horas, pensava até, entre todas as outras coisas sem importância, em acionar meu corriqueiro plano de se fazer desinteressado e deixar morrer mais um inexperto romance. E de repente aquela pequena tela me aparece e a transforma, na minha cabeça, em uma musa cujo entendimento não deveria ser assim tão simples. A mesma feição, o mesmo mistério dos inquietos lábios carnudos, os mesmos olhos levemente fechados, minuciosamente esféricos. O fundo da tela era todo azul, contrastando com o rosado de suas bochechas, aposto que sua voz também era parecida, seu jeito de segurar na mão, sua risada. Aposto.
(Thiago Cunha)
1 comment:
foi mal. meu superego me disse pra eu comentar este texto, mas eu que só sou eu vou fingir que ele passou batido.
Post a Comment