10.11.06

Kurik-Kurik


Era para ser de cinco minutos o banho, mais foi se prolongando com as fragrâncias e cremes que ela costumava comprar, todos com nomes de frutas que ninguém imagina que possam existir. Não vinha a foto na embalagem, e por um tempo criou-se nela certa curiosidade, até que esbarrou num frasco que caiu, entrou shampoo no olho e já pouco importava se era Nispolero ou Madreño o que esfregava e depois deixava agir na cabeça por dois minutos.

Vestida e ainda perfumada, sentou a frente do computador pra pesquisar sobre os dois. Ela, uma jovem corretora de imóveis e os dois, pássaros que pareciam papagaios, ou pelo menos era o que todos se contentavam em dizer quando os viam pra lá e pra cá, mas que ela teimava que não.

Acontecia que a casa onde passava as tardes não valia o preço que o proprietário pedia e do qual não abria mão. E não havia esfregada no chão, não havia explicação sobre o curso do sol na vista da janela da sala que adiantasse. A missão de vendê-la tinha sido lhe dada a título de merecimento pelo ótimo trabalho em um condomínio luxuoso de apartamentos, porém a fama de vendedora perspicaz, que antes lhe acompanhava abrindo portas e encurtando seus turnos, agora começava a adormecer com ela, sozinha na mesa improvisada no centro da sala fria.

E por isso, aturdida pelo questionamento de seus dotes, Julia nunca iria apenas chamá-los de papagaios. A casa não tinha banheira, nem a piscina cascata. Os azulejos eram tão antigos que já não se podia argumentar um charme remanescente por conta de nostalgia. Se ao menos fossem portugueses, mas não. As cortinas empoeiradas nem eram reconhecidas como tal, e de tanto a perguntarem sobre a necessidade de uma lona atrapalhando o sol, Julia um dia as removeu uma a uma, o que pra ela só fez ressaltar as marcas de massa corrida, resíduos da exposição de muitos quadros que ela imaginava terem sido tenebrosos.

Mas era nesta casa e em nenhuma outra que os dois pássaros verdes pousavam, ora na varanda do quarto de casal, ora em uma haste propositadamente mantida no jardim. Eles não falavam, mas via-se que com alguma dedicação o fariam. Resmungavam barulhos distintos que se repetiam e organizavam-se conforme o humor dos dois. Muito inquietos, talvez duas fêmeas maduras e invejosas, dois jovens se xingando perenemente, não se sabia.

Para a pesquisa, Julia munia-se apenas de sua intuição e da ciência absoluta do tom de suas penas, amarelas abaixo do bico e laranjas na cauda. Procurou pouco e já logo achou os dois, que muito diferentes do Papagaio Verdadeiro, dizia o site, tinham um canto de “kurik-kurik” e chamavam-se Papagios do Mangue. “O Papagaio do Mangue vive nas matas no litoral atlântico e chega aos manguezais. Pode ser encontrado na Colômbia, Venezuela e Guianas até o Paraná, oeste de S.Paulo e Rio de Janeiro.” Na argumentação que Julia já ensaiava, São Paulo foi vetado, e logo depois o Rio. Somente referências internacionais seriam dadas aos questionamentos sobre a procedência dos dois, o que aumentaria o mistério. “Não me pergunte o por quê, mas são lindos, não?..”, dizia ao espelho, sorrindo.

Os três continuaram a conviver na casa. Todos os nomes de árvore foram catalogados, procurados por ela em bibliotecas. Seu pouco salário era gasto em capachos, cortinas mais delicadas, com bom acabamento e preço justo. Pendurou um dia qualquer gravura de Van Gogh, usou um produto diferente que tirou o preto das entranhas dos azulejos do banheiro.
Os papagaios, um mês e tanto depois, cantavam Marina Lima tarde afora, comiam mamão, e a ânsia de vendê-la ia dando a casa um aspecto convidativo de mulher nova e feliz, bem como Julia gostaria que fosse a sua. Certa vez, sem a autorização do chefe, levou para casa um pretendente com o qual assistiu a filmes e escutou música. Fizeram caipirinha de frutas quase tão raras quanto as de seus shampoos e ela, embriagada e contente, sentiu-se dona da casa que não viria a ser de ninguém.

Em um dia onde caía uma garoa chata e os pássaros não soltaram um som, ela já nem mais se dedicando aos discursos persuasivos alternativos, chamaram-na ao escritório central onde lhe passaram novo itinerário. A casa teria sido negociada com uma grande construtora que a arrematou à vista. O coração de Julia apertou. Visitou pela última a construção supervalorizada que a casa voltava a ser. Triste, recolheu o quadro, as cortinas e pôde escutar baixinho o “kurik-kurik” dos papagaios, procurando um imóvel à altura, agora em outro bairro.

11.10.06

Segunda-Feira

O dia estava muito frio. Perdoaria quem nesse dia pulasse o banho e fosse direto ao trabalho, mas não sei se seria perdoado. O tempo era tão frio e a água tão quente, que mal a cheguei sentir, caía como centenas de curtas beliscadas num corpo que não era meu. Nem as pernas, estalagmites do concreto e do azulejo, eu sentia.
Acabado o banho enxuguei a cabeça, escolhi uma das combinações que faço sem criatividade entre a calça e a camisa e desci as escadas para a cozinha ampla onde o frio parecia habitar com mais vigor, talvez por tanto tempo vazia...os cachorros presos do lado de fora, latindo ainda sem muita vontade. Antes de acender a luz uma esperança residual da infância viu minha mãe atrapalhada entre pães e leites, chamando-me pelo diminutivo. Ela não estava lá. A lâmpada acendeu preguiçosa, segundos depois de eu já ter apertado o botão. Oscilou indecisa, apagou, voltou a piscar até encontrar-se numa estabilidade triste e amarela...meu sol de segunda-feira.

2.10.06

Caderno

Escrevo aqui no caderno o que queria que eu fosse. Quando acaba o assunto e nada vejo de interessante é quando nem fantasiando eu sou, quando estendo a fatídica condição de senhor grisalho até meus mais altos devaneios e nada resta além de, na tristeza desse constato, escrever sobre isso.

Guardo-me com o passar do elástico nas abas desse pequeno confessionário, e na gaveta ou bolso do jaleco fico descansando da vida que levo, meu corpo oco das coisas que no caderno deixei escritas, sempre.

23.8.06

As Mulheres Ocas


Nós somos as inorgânicas
Frias estátuas de talco
Com hálito de champagne
E pernas de salto alto
Nossa pele fluorescente
É doce e refrigerada
E em nossa conversa ausente
Tudo não quer dizer nada.

Nós somos as longilíneas
Lentas madonas de boate
Iluminamos as pistas
Com nossos rostos de opala.

Vamos em câmara lenta
Sem sorrir demasiado
E olhamos como sem ver
Com nossos olhos cromados.

Nós somos as sonolentas
Monjas do tédio inconsútil
Em nosso escuro convento
A ordem manda ser fútil
Fomos alunas bilíngües
De "Sacre-Coeur" e "Sion"
Mas adorar, só adoramos
A imagem do deus Mamon.

Nós somos as grã-funestas
Filhas do Ouro com a Miséria
O gênio nos enfastia
E a estupidez nos diverte.

Amamos a vida fria
E tudo o que nos espelha
Na asséptica companhia
Dos nossos machos-de-abelha.

Nós somos as bailarinas
Pressagas do cataclismo
Dançando a dança da moda
Na corda bamba do abismo.

Mas nada nos incomoda
De vez que há sempre quem paga
O luxo de entrar na roda
Em Arpels ou Balenciaga.

Nós somos as grã-funestas
As onézimas letais*
Dormimos a nossa sesta
Em ataúdes de cristal
E só tiramos do rosto
Nossa máscara de cal
Para o drinque do sol posto
Com o cronista social.

(Vinicius de Moraes)

26.6.06

Olhos

Eu e seus olhos conversamos muito. Ele com um azul profundo e eu a perguntar sobre coisas diversas, todas numa língua nova, muda, cheia de neologismos que nosso amor inventou.

Para falar com os olhos, tem de se atentar às suas particularidades. Quando fecham de leve é bom, pois acontece quando a boca abre e os aperta, num sorriso. Quando arregalam, aí é preciso ponderar. Pode ser uma surpresa agradável, um tremendo espanto ou, isso muito raro, um pedido pra que assopre o cisco.

Os seus fazem tudo isso com uma irregularidade que todos os olhos deviam ter. Eles apertam de leve, você logo acha que “tá bom”, “tá feliz”, mas logo deles cai lágrima e você fica sem entender. O que é bom, posto que não há nada mais enfadonho do que olho pragmático.

Outro dia mesmo me diziam coisas sobre você em troca de elogios que saiam da minha boca. Gostam-te tanto, apesar de dizerem que você é parte deles e não o contrário. Vangloriam-se pelas coisas bonitas que já filtraram e até hoje perambulam aí dentro, espiando às vezes pra fora através deles mesmos que, quando isso acontece, brilham.

E para preservar em você o sorriso e neles a cintilação, fazem descer as cortinas da pálpebra para o inapropriado e, abertos, focam bastante em borboleta, criança, filhote de cachorro... Confessaram-me ficarem sem graça na olhada que você dá pro espelho de corpo inteiro antes de entrar no “Box”, mas num acesso de pilantragem que não é normal nos olhos disseram que é lindo, uma coisa maravilhosa que os meus, em conversa particular deles, assumiram nunca terem visto em mulher alguma. Meus olhos também têm lá suas malandragens e me pintam como um bom rapaz para os seus.

Pelo respeito mútuo que existe entre eles, as manhas do meu castanho fazem calmo o teu azul, que sereno comprime-se em contentamento, deixando apenas uma brecha por onde escapa um ou outro segredo.

Lá Dentro

Sou, dentro do corpo em que me refugio, uma massa indiferente de ar. Estou atrás da boca que ri, do olho que chora. Sou o nulo desejo de qualquer coisa, ainda que meu corpo e o cérebro de meu corpo acordem, trabalhem, tenham lá os seus prazeres e durmam.

O jeito com que rio só repuxando o lábio superior direito, e que as pessoas ficam sem saber se é cinismo ou só meia risada, isso não sou eu. Estou lá dentro, assistindo-me sofrer, observando complacente como é inevitável a excitação da alegria.

Sou o que todo mundo tem, apesar da maioria não saber, coisa essa que não se explica por genética ou ambiente ao qual na vida foi exposto, tanto porque meu corpo, bem educado em intelecto e maneiras da alma, não consegue sentir a dor dos famintos da África e meia volta xinga motoboy pesadamente. Mas eu não sou isso.

Não sou meu gosto recente por Chico, nem com qualquer outra coisa posso afirmar que me identifico, porque eu, lá no fundo, sei o que faz a cabeça do meu corpo gostar disso ou daquilo, inevitavelmente.

Sei que uma mulher de saia terá grande vantagem aos olhos de meu corpo, e que se sua voz for rouca e os movimentos lentos, vai deixá-lo louco. Eu sei. Ele vai consultar a cabeça sobre suas chances, acreditar que terá alguma, dilatará a auto-estima o máximo que seu cérebro permitir para então esparramar frases de final de semana sobre ela, provavelmente não só uma mulher de saias que anda devagar.

A vantagem do meu corpo é a de, em instantes de particular abstração, sentir uma coisa que não pinica, não faz cócega e não dói, que sou eu. Sou como perguntas enrraigadas na aceitação das coisas, a indiferença que “reseta” o programa do meu corpo, pra que tudo pra ele seja um pouco novo, sem deixá-lo perceber extamente quando foi que desligou e voltou a funcionar.

Mulheres de saia ainda não foram reconhecidas por seu invólucro, ao menos a grande maioria, e nisso eu e meu corpo levamos vantagem.

10.5.06

Procura da Poesia


...Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros.
Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentradano espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?...

Carlos Drummond


escute:

http://www.memoriaviva.digi.com.br/drummond/poema025.htm

9.5.06

Pra Parecer Sonho

Pra parecer sonho, em primeiro lugar, é bom que ande em lugares que não te agradam, entre pessoas que não conhece. Só com essa ferramenta, que eu assumo ser meio melodramática, é que o sonho sai "redondo".

Por exemplo, agora: frio lá fora, o parafuso solto do banco do ônibus martelando no pensamento, ajudado por um forró da pior qualidade. É agora que sonho (quando você dorme não escolhe, às vezes nem lembra).

Até eu chegar em casa, pelos vinte minutos que isso deve durar, vou comigo ilustrar uma casinha no alto da colina. Uma casa que passarinho canta de dia, cigarra de noite, cujo terreno preencho como se dela fosse um velho amigo.

O aluguel foi uma pechincha, e no ônibus eu rio sozinho por isso. A mulher que mais gosto está a caminho. Sempre achei que era do perfume dela que eu gostava, mas o cheiro bom vinha do pescoço, eternamente. Ela não tem rosto, está de busa e cachecol, com os cabelos soltos ao pouco vento que bate.

"Que linda!" - ela adora a casinha.

Concordo com um sorriso satisfeito e a convido pra sentar lá fora. Sentamos num banco de madeira, preso por correntes à uma estrutura que o permite balançar. Ela acha graça daquele "vai-e-vem" e um pouco mais tarde, depois dos passarinhos terem terminado e antes das cigarras começarem a cantar, nos beijamos num silêncio pacífico e frio.

De fora se escutam latidos de cachorros que, apesar de vira-latas, são muito bonitos e todos correm pela varanda tirando barulho da casa pré-fabricada. Ela é toda de madeira, e talvez por isso o próprio contrato aconselhava: "-Por favor, evitar entrar na casa calçado, especialmente na salinha de TV." Os proprietários devem ter lido várias revistas de decoração antes de projetarem a salinha, que tinha (claro) uma TV no canto, mais janelas que o resto da casa e várias almofadas de cores e tecidos diferentes. Eu que mando no sonho, por isso incluí nesse cômodo uma jarra de suco de abacaxi com hortelã e um pote de pipoca de panela que dividem um criado mudo com os controles remotos.

Assistimos ao filme. Talvez o "assistimos" passado também tivesse que estar entre parênteses, já que o filme em si ficava pouco interessante quando se olhava pro lado e via a mulher que você mais gostava. Eu, pelo menos, não prestei muita atenção, mas assistindo ao final entendi quase tudo. Era um filme de amor.

Com a TV já desligada, começo mais uma vez aquele cortejo de ir devagar, encostanto com o final dos dedos o começo do corpo dela, tudo aquilo que a gente pensa copiar do filme, sendo que no fundo ele é quem copia da gente (ele imita a gente, a gente ele, nada muda).

De repente, uma barulheira vem de fora, balançando as árvores e fazendo voar algumas corujas. Um carro em alta velocidade passa pela estrada, entra pelo portão e freia bruscamente ao lado da porta que dá pra varanda. Os cachorros saem raivosos, latem feito loucos mas são logo espantados pela senhora de cabelos loiros que sai do carro e já abre a porta da casa. Entra na salinha com dificuldade, com sapato e tudo, espalhando as almofadas e dizendo firme:

- Com licença, rapaz.

- Desculpe senhora, mas não me lembro de term...

- Meu filho, este lugar é pra idoso. Por favor.

Abro o olho.


Thiago Cunha

20.4.06

Missa na Catedral de Sínope



Diógenes. A satisfação é proporcional à privação da vontade.

(silêncio)

Todos. Heis que poupo a segunda para assegurar-me da primeira.


D. A crença no destino é o amém de quem largou a mão de deus.

T. Pois feliz é quem lhe deixa escapar também a conformidade metafísica.


D. Ser você mesmo salva, ao passo que te apaga.

T. Pois que sumamos na embriagada tranqüilidade.


D. E para isso estarão prontos?

T. Sim, para isso estaremos.


D. O hoje é onde temos de nos ater à vida, posto que o resto é imaginação.

T. E que, entre o término de um dia e o início do outro, a fugacidade do agora não nos assombre.


D. É normal que a indiferença nos venha a somar como poderosa vantagem. A virtude está em sustenta-la ante às maiores tentações.

T. E das virtudes, da mesma forma, iremos esquecer.


D. Amor é reação química na cabeça de quem ama.

T. Cabe a nós nos convencermos do contrário.


D. E se por fatalidade o fizerem...

T. ...que a razão tenha misericórdia de nós.


26. CANTO FINAL (MIL PERDÕES – CHICO BUARQUE)

1- Te perdôo*por fazeres mil perguntas, *que em vidas que andam juntas *ninguém faz. *Te perdôo *por pedires perdão, *por me amares demais.


2- Te perdôo. *Te perdôo por ligares *pra todos os lugares *de onde eu vim. *Te perdôo *por ergueres a mão, *por bateres em mim.


3- Te perdôo. * Por contares minhas horas *nas minhas demoras por aí. *Te perdôo. *Te perdôo porque choras *quando eu choro de rir. *Te perdôo por te trair.

Thiago Cunha

16.4.06

Quase Nenhuma Palavra

Tenho amores com os quais não ouso conversar.


Não travo laços com elas que, por tanto devaneio meu, tornaram-se já grandes personalidades da revista diária que publico e entrego pelas esquinas da imaginação.


São bacantes poetisas, beatas castas arrependidas, neo-hippies vendedoras de bijouteria, que na mais profunda dor aparecem, com brisa de praia, a me sorrirem e dizerem, cada qual com sua voz, o quão tranqüilo tudo está, “não é”?

E me arrependeria muito se um dia cedesse, ao deixar-me escutar delas mais que isso.


Amores são sonhos e, como tais, acabam logo quando tentamos transpô-los à verdade, botando-nos a sonhar de novo.


São idéias a andar em sapatos de estranhas, embaladas em uma estética que perpetua indefectível nas manchetes fervorosas de minha publicação, recheada de fotos e quase nenhuma palavra.

Mais que isso seria talvez conhecê-las, e conhecer alguém é quase sempre exercitar a ponderação de nossas expectativas.


E se sexo sobrou desconsiderado na teia dessa teoria, já que deveras necessário para a paz que procuramos, digo-lhes que as mulheres que porventura sejam bonitas, e por fatalidade eu venha a conhecer melhor, são apenas os degraus errantes a me conduzir à superioridade do onanismo solitário.

Thiago Cunha


9.4.06

Salva-se o Hoje

Depurando-se da nostalgia e da esperança, salva-se o hoje para praticarmos as besterias das quais cismamos em nos privar.

Pois não importa o que hoje você faça ou diga.

Caso o "conjunto de você" resulte em grande impacto, no futuro ou no passado, hão de criar um heterônimo a arcar com sua estupidez de agora.

Thiago Cunha

Hão de me jogar ao mar, já pó seco, em meu fenecimento. E todos já de mortiço e embriagado sentimento deixarão me ir, com o intenso azul que na noite é o breu silencioso do nada. E nada também vou ser eu, ao tocar no fundo, de modo figurativo porque até lá já teria diluído ou me espalhado bastante.

Iria sem caixão, sem epitáfio, virar a lembrança mais doce. E tem de ser em pó e no mar pra isso, para que o derradeiro descanso siga o mais inexorável caminho, e nada possa ser consultado ou remexido.

Só haverão de ter comigo, caros amigos, nas abstrações particulares do que achavam que eu era. E isso, entre todas as coisas que eu fiz, será pra cada um o meu “eu” mais misteriosamente bonito.

10.3.06

Por não ser mais

Eu gosto do que passou
Pois só quando renova, comparo
E o que antes no fututro seria só passado
Vira sentimento saudoso
Amargurado imbuído de um leve desespero

Por ontem não ser mais
Hoje sou novo
Com planos fantáticos
De amanhã gostar
Do tempo que fazia planos

Já comigo arquitetando outro
Que faça do amanhã o ontem melhorado.

21.2.06

Sinonimo

Erra agreste sua voadura
Na gralhada fremente de meu coração
Antes cotó, de tanto binga espirraçar
E que agora corusca
Brota botão
Vira carme, em palavra invulgar
Pro vate que, sem vontade
Eu sou.

8.2.06

Não Houvesse

Em todos nós reside
A vontade implícita de não habitar
Lugar, situação ou corpo
De vagar resoluto, nem feliz nem triste
Entre coincidências
Sem esperança de que o destino exista
Como se a vida fosse um sonho quase no fim
E meio acordados pudessemos governá-lo

E se corpo não houvesse
Nem o espelho tivessem descoberto
Seríamos nós sem as muitas variáveis
Com as quais agora convivemos

E beberíamos menos
Trabalharíamos menos
Porque provar a nós mesmos
O que éramos
Seria de uma simplicidade muito mais honesta.

16.1.06

Vem cá

Venha cá. Sei o que está pensando. Vem cá e deita sua cabeça aqui.

Pronto. Não fica triste, olha lá, olha lá como a noite entra rápido e os barzinhos lotam e os telefones tocam. Olha como se beijam e se riem e falam de cinema e pegam nas mãos uns dos outros.

Não tem problema, se chorar não ligo. Nem conto. Mas olha aí como esse acorde é bonito, como o mundo vai sozinho não deixando que ninguém desista.

Não chora não, vem cá. Te dou bolacha, chá, te faço carinho, alugo filme, ligo pro trabalho e digo que está doente.

"- Pois ele é que estão. Todos eles."

Ahhhh...vem, vem cá.

(Thiago Cunha)

8.1.06

Memória

Vou sempre lembrar de você como minha derradeira felicidade. A título de importância e comparação, claro, pois tive outras.

Andei sozinho por uma cidade desconhecida, descobri as pessoas de lá como muito simpáticas e me embebedei da dose mais certa para aproveitar a brisa do mar que há tempos não sentia.

Conheci outras pessoas, outras mulheres, com as quais tive excelentes conversas, que insistiam sempre em pautar assuntos de meu total domínio.

As mulheres que conheci falavam calmamente ao meu ouvido, frases que sentia serem muito pessoais, como se as tivessem guardado e finalmente alguém, eu, pudesse ouvi-las. Falei no momento certo, deixei o silêncio interromper a conversa no tempo certo, e as beijei também com calma entre os sorrisos espontâneos que o momento proporcionava.

Quando muito inseguro sobre o que acabara de dizer na discussão já etílica entre amigos, um deles me acompanha ao banheiro e elogia minha “corretíssima” colocação. Assim como a estranha se aproxima, bonita, com um sorriso mais esperto que espontâneo, pra dizer que havia me visto na pista, perto do bar, e gostaria muito de ter uma conversa.

Tive essas, outras felicidades que talvez agora me escapem (acordar querendo trabalhar?), mas não lembro de alguma ser assim, em memória, quase tão de verdade, a todo momento, com cheiro e alucinadamente tátil, como a sua. Não como a sua risada, curta, não como o jeito que, depois de eu contar uma história, você já me rebatia com outra, travando um duelo de contos cômicos verídicos. Ninguém ficou quieta como você, nem tão honestamente brava. Ninguém é assim, linda sem se dar a mínima conta.

2.1.06

Seus olhos amendoados transcendem o tempo

“Seus olhos amendoados transcendem o tempo!”, passou pela minha cabeça assim que a vi, postando-se bem a meia altura, frente a frente comigo: Aphonsine, óleo sobre tela, Dama Sorrindo, Renoir. Havia tempo que não sentia tudo o que processo de conhecer alguém podia despertar. Andava sereno entre as obras francesas, pensando muito pouco, pelo menos não em coisas de real importância, quase todo meu pensamento preso no fato da entrada do museu ter aumentado tanto. Também no que tinha escutado em um filme nacional, que o ser humano precisa de pelo menos 5 metros quadrados para não enlouquecer. Tinha visto um mendigo antes de ponderar sobre minha fome e a vontade de ver Van Gogh pela centésima vez e pensei que deve existir, também, um espaço físico limite para a sanidade do homem. O mendigo sentava quase nú, gozando de si mesmo, rindo com seus poucos dentes e falando com alguém que seus copos de pinga ou seu espaço infinito de ruas e praças tinham inventado. Cheguei a apressada conclusão de que as regras são impossíveis de serem quebradas ou ignoradas sem que sua consciência seja comprometida – mendigos e presidiários, por abundância ou falta de espaço, viriam a desvairar.
Bom, mas no meio desse dilema parco de conteúdo apareceu Aphonsine, numa pequena tela adornada por uma moldura de madeira com nuances douradas nas extremidades. Muito formais eram tanto seus trajes quanto sua postura, ereta. Usava algum tipo de tecido bufante por debaixo do paletó azul, mostrando-se na parte do pescoço e tornando a “dama” um pouco mais opulenta e rechonchuda na obra do que deveria ser em pessoa. Seu rosto, porém, foi o que realmente pôs fim a todo aquele meu devaneio. “Seus olhos amendoados transcendiam o tempo”, pensei, comparando-a a Joana. Nem cheguei a avisá-la da semelhança, ela com certeza não concordaria e se chatearia comigo – Aphonsine não tinha nenhuma pose ou estilo -, mas se caso deixasse-me explicar, diria que tanto no olhar quanto na forma dos lábios e nariz, e isso pra mim já é muito, as duas eram muito parecidas. Ali, pintura estática grudada na parede, a “dama sorrindo” levantava suavemente um dos cantos da boca, ao mesmo tempo que fechava seus olhos. Era como uma foto mal batida, uma surpresa, um sorriso ou qualquer sentimento contido – eu sei, esse é o princípio do impressionismo, mas mesmo assim me comoveu. Não planejava em pensar em Joana nas próximas horas, pensava até, entre todas as outras coisas sem importância, em acionar meu corriqueiro plano de se fazer desinteressado e deixar morrer mais um inexperto romance. E de repente aquela pequena tela me aparece e a transforma, na minha cabeça, em uma musa cujo entendimento não deveria ser assim tão simples. A mesma feição, o mesmo mistério dos inquietos lábios carnudos, os mesmos olhos levemente fechados, minuciosamente esféricos. O fundo da tela era todo azul, contrastando com o rosado de suas bochechas, aposto que sua voz também era parecida, seu jeito de segurar na mão, sua risada. Aposto.

(Thiago Cunha)

Amar

Amar é, quando falta assunto, não esperar que o outro diga “eu te amo”
Também não temer que lhe diga que tudo acabou
Amar é, no silêncio, apertar um do outro as mãos até que alguém diga qualquer coisa.

(Thiago Cunha)

1.1.06

Meia-Noite

Neste próximo ano lhe desejo toda a felicidade. Sempre o fiz, mas como a gente fica muito preso às badaladas dos ponteiros, terei o cuidado de desejar mais forte durante o primeiro segundo depois da meia-noite. Vou querer que sua vida passe devagar nos momentos bons, e que esses sejam muitos, pra aumentar o seu prazer e retardar a sua velhice. Que as rugas inevitáveis não lhe afetem ao brotar e serem percebidas pela primeira vez, que sua alma e os caminhos pelos quais andou, tropeçou e quase caiu, estejam livres nessa hora, com vaquinhas a mugir pelo acostamento e a temperatura oscilando entre o calor do fim da tarde e a brisa amena, escoada pelo relevo estrada.

Feliz Ano Novo. Quero que tudo o que dizem sobre os significados das cores das roupas íntimas seja um pouco verdade. E se amarelo for alegria e vermelho amor, quero que vá de loja em loja procurando uma cor derivada dessas duas, para que seus amores sejam sempre felizes e suas felicidades, apaixonantes.

Que o ano lhe resguarde coisas irreversivelmente boas, que as realizações que demandariam tempo aconteçam de repente, e que você tome conta disso a jantar em um restaurante alto, com uma amiga ou qualquer pessoa que possa ficar surpresa e orgulhosa de você. Que no domingo não venha a lembrança da segunda e que você tenha muitas, muitas pequenas tarefas neste próximo ano, para que o fardo maior que às vezes se revela e nos assombra seja anulado pelo término de uma e o começo da outra.

E que as mazelas hipocondríacas de nossa cabeça durmam por tempo indeterminado, um sono que só evoque sonhos bons para amparar seus pensamentos. E que você consiga se transportar pra sua ilha florida com fundinho de samba todas as vezes que desejar, onde estiver, e que permaneça austera e firme com seu sorriso, todos os dias.

Vou querer que tenha sempre um abraço te esperando e que suas risadas, toda vez que acontecerem, ribombem em algum lugar da minha alma, pra me certificar da eficiência dos meus votos.

E se a saudade for inevitável, se perceber que o ano passado superava esse próximo em muitos dias, amigos e amores, não esqueça de me avisar, para que possa desejar melhor e ainda mais forte na próxima meia-noite.

Verde

E quando dos raios
Propagar-se um calor terminal
Condensará o que debaixo é pergunta
Pra subir e voltar água, fria
Certeza entre prismas coloridos

E do arco-íris virá uma brisa chata
Pra depois, novamente, surgir o sol
Calor que fará vibrar o menino
Nessa embriaguez maluca

De não querer quase nada
Além de, suando, tomar a chuva
Reclamar do vento
E esperançar, durante os dias
Cores diferentes

O menino fala
A mãe não entende
Que por ter muita gente
Vermelha, amarela e azul
Ele quer uma verde.