29.9.05

Filminho

“Estou presa ao que sou”, pensava ela subitamente. A chuva caia devagar, e o romantismo do barulho das gotas sobre o patamar da varanda se desfazia ao olhar pra cima, pro céu coberto de nuvens negras de onde pingavam. A pipoca estourava na cozinha, enquanto Luisa, já ruminando sobre outras coisas , empunhava a caixa do DVD que havia alugado.“Porque senão eu falaria menos, teria dito o que a Rê tinha falado, só uma coisa: “que bom que você voltou”. Deve ter alguma coisa genética nessa vontade desenfreada que eu tenho de saber demais, de cada detalhe, de rir com esses roncos nasais aos soluços.”

Não chegava a ser um filme europeu (disse ao funcionário da locadora que não queria pensar aquela noite), mas era romântico e encenado por uma atriz espanhola que parecia nunca perder o sotaque. Ela já tinha visto o trailler, mal editado por sinal, pois nos 30 segundos de sua duração mostrou morte, briga e beijo.

“Também tenho isso de gostar de ficar sozinha, de ter preguiça de falar com as pessoas, escutar música deitada no chão. Quando percebo já estou lá, estatelada. Ele não vai me ligar, e eu não ligo. Vai achar que é jogo isso que eu estou fazendo, sem saber que essa coisa enroscada no meu DNA não tem nenhuma expertise em competição de ego. Eles especulam, eu esqueço. Claro que se o telefone tocar eu atendo, se ele estender a conversa para nossas preferências musicais vou me animar e me mostrar simpática, mas isso é outra coisa que só reparo quando já passou, acho uma grande bobagem e desligo.”

Vira o trailler no cinema acompanhada de Eduardo, que quase nem falou nada antes de passar o braço por detrás do banco, escapando para os ombros dela. Também foi em silêncio que começou a olhar pra Luisa, sem desviar, e tanto, e com uma veemência que nada ela podia fazer senão retribuí-lo com um beijo. Não achou estranho, nem ele.

“Quando eu gostar de alguém vai ser tão forte que não vou agüentar. Já namorei uma vez e escrevi uma carta dizendo que, se ele morresse, morreria junto – puro gracejo. Acho que o que eu quero ser é muito diferente do que eu sou, mas a vontade e o fato irrefutável não se cancelam assim tão fácil, vão se percebendo, revelando-se nas brechas das coisas que faço, me fazendo parecer uma louca.”

O aparelho embaixo da Tv fazia um barulhão enquanto lia o cd, mas era bom sinal, o único que garantia o funcionamento do velho eletrodoméstico. Ele que já havia feito Luisa morrer de vergonha inúmeras vezes, quando precisava voltar rapidinho pra locadora e tentar trocar o filme que seu DVD recusava-se a reproduzir “Vou comprar outro semana que vem, juro”. O dono fazia uma cara torta, porém interposta pela simpatia dos obesos. Dizia que era bom que aquela fosse mesmo a última, e Luísa punha-se a escolher o novo filme, agora sem pedir nenhuma dica, discretamente.

“E quanto mais louca, mas pareço encantar quem a mim não interessa. Minha honestidade é tida como voto voluntário de indiferença, acham que eu dou uma de cética niilista. Não é nada disso! É vontade de dormir mesmo, é não ter o mínimo interesse nas coisas que para as outras pessoas são engraçadas – eu rio de cada história triste, é tão estranho. Não sei se preciso “ser” sem pensar, ou caprichar para “ser” muito pouco. Prevejo o que eles querem ouvir, mas não me agrada essa listinha onde vai se ticando as atitudes básicas, até o momento onde os dois possam dividir de um triste pleno conhecer. Primeiro encontro: jantar, pedir salada, falar pouco da vida, não dramatizar a situação com a mamãe, talvez citar uma ou outra coisa engraçada. Segundo: entrar no carro um pouco menos feliz que da última vez só pra testar a reação, ficar mais séria e parecer um pouco mais inteligente (nunca entrar em política, não leio jornal há meses). Penso demais, penso demais...”

Despejou o conteúdo do saco na bacia verde, voltou pra sala já enchendo uma mão de pipoca, fechou a varanda, colocou a legenda e áudio em inglês pra não perder a fluência, lembrou um pouco mais de outras poucas coisas, não parou de chover, o telefone não toca, o filme começou.

(Thiago Cunha)

22.9.05

Se Eu Fosse Um Padre


Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,não falaria em Deus nem no Pecado— muito menos no Anjo Rebeladoe os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:nada das suas celestiais promessasou das suas terríveis maldições...Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,desses que desde a infância me embalarame quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —um belo poema sempre leva a Deus!

(Mario Quintana)

A vontade de escrever ultrapassa todo o niilismo colegial que venho sentido. Sentado na frente do computador (mais romântico seria uma velha maquineta), você olha pra tela branca do Word, a barrinha branca piscando no que viria ser o começo de sua história, e tudo passa pela cabeça. Um começo forte? Um quote famoso antes de se iniciar um ensaio charmoso e filosófico?

Por alguns instantes, enquanto assistia a um filme, pensava na vida de uma senhora que havia visto hoje pela manhã. Ela andava calma pela praça, e o ficou fazendo por muito tempo, às vezes andando bem depressa, às vezes quase parada, seus sapatos eram bem polidos, de coro marrom. Exercício não estava fazendo. Talvez pensando em algum filho distante, quem sabe preocupada com o veredicto de seu último exame e já se preparando para discordar veemente de seu médico: “Mas doutor, bem agora que ando saindo e dando minhas andadinhas?!”.
E disso poderia se discorrer uma história não muito longa, que se ateria muito à ilustração. Seu desfecho seria algo engraçado como o seu amor por sal no arroz e feijão e o terror que seria se o doutor, por ventura, o cortasse do cardápio.

Na volta passei por ruas próximas, do lado de casa, mas onde nunca antes estivera. Os guardas em suas cabines me olhavam, desconfiados. Eram bonitas e grandes as residências - pensei comigo sobre a real importância daqueles senhores de bicicleta e apito as defendendo. Antes de sentar no computador também pensei em uma dessas casas, uma de estilo rústico, degraus de tijolos, muitas plantas, trepadeiras bem podadas ao redor de batentes de portas e janelas. Seria a história de uma mulher, mas essa um pouco mais nova. Uma mulher que agora deu pra duvidar de sua beleza, olhando com desprezo os editoriais de auto-ajuda nas revistas que assina. Rosana, ou Lúcia, ou Angélica, ou Marisa teria manias, como a de sempre acompanhar o trabalho do jardineiro e nunca, nunca se esquecer do jornal do marido, mesmo ele quase nunca lendo. Seu carro seria preto, tipo caminhonete, com uma cadeirinha suja das bobagens que seu filho come. Sua profissão seria tradicional, no seu escritório guardaria fotos da família e do cachorro na tela do computador e grudadas com imã nas paredes da baia. Mas o fim disso também não é promissor. Aliás, retiro isso que disse, toda história pode ser promissora.

A dificuldade é de se escolher tema plausível de espanto, de reflexão. Por isso , por falta de imaginação, um pouco de covardia e uma necessidade urgente de esvaziar a cabeça que resolvo estender as mãos à salvadora metalingüística. Sim, porque nada adianta escrever à toa, sobre assuntos de embasamentos temerários, a pairar entre frases ora curtas, ora muito extensas, vírgulas inesperadas, enfeites a disfarçar o oco sobre o que se escreve. Antes escrever honestamente sobre coisa nenhuma.

Agradam-me mesmo as ótimas idéias, e essas quanto mais simples, melhores, idéias imunes ao uso pouco criativo da língua. Tenho essa necessidade muito grande de encontrar idéias, idéias dentro das idéias, felicidades nas coisas mais corriqueiras, e tristeza quando tudo parece certo. Pois, pra mim, a vida nada mais é que um ciclo oscilante, complacente com tudo o que possa vir a acontecer. Dentro desse ciclo, as pessoas se distinguem pela freqüência em que vivem e pelos momentos em que param para assistir a vida. Ando muito observador desse panorama, por isso, e não por qualquer outra razão, agora eu sento aqui e torço pra desamarrar o nó que de vez em quando não te deixa nem viver, nem assistir, tamanha quantidade de informações. Eu vivo agora, desamarrando um nó.

Escrevo com a esperança de uma linha mostrar-me modestamente algo mais importante do que penso, e essa é a mesma esperança que tenho quando pego um livro pra ler. De de repente abrir uma página e me descobrir, mesmo que vivido por outro personagem, em outro tempo, vivendo. Sento hoje, de noite, escrevendo sem nenhum tema, para amanha acordar e tudo parecer um pouco mais novo. Até que novamente tudo se repita, as linhas se encontrem e em conflito façam entre as dúvidas uma amarradura ainda mais firme. Terei de sentar novamente, então, a viver.

(Thiago Cunha)

Pouco Me Importa

Pouco me importa sua inquietação e fácil fluência dos dedos no teclado. Seu texto e ruim. Talvez você não tenha vivência, use sua pouca idade como desculpa. Quem sabe com um pouco mais de leitura, quantos livros você já leu? Aconselho Hemingway bem traduzido, Clarice e muita poesia, de Pessoa, Vinicius, Cecília Meireles.

Não posso veicular esses textos assim, deliberadamente, entre outros nomes tão importantes. Todos velhinhos, alguns até mortos, suicidas. Deixe ao menos o cabelo crescer, mantenha uma barba descomportada e comece a ser um pouco menos verborréico. O texto melhora quanto menos se fala, escute mais, agregue valor às poucas coisas que você diz.


Garoto, seu estilo inexiste, me desculpe. Nada vai me convencer de que essas orações grosseiramente imputadas sejam charmosas. Você não tem “feeling”, até gramática falta em você, “ascender” com “c” precedido de “s” quer dizer “elevar-se”, pelo amor de deus! Elabore suas ilustrações com mais cuidado, o fato de suas imagens serem iguais a de autores renomados não é coincidência, é plágio. Ainda mais quando na cópia nada e aprimorado, plágio de camelô isso que você faz.

Já falaram da pungente vontade de escrever, já falaram de amor não correspondido, de vontade de morrer, de alma gêmea, de coisas platônicas, de tédio, emoção e pensamento. Já falaram de tudo isso. Não posso te eliciar a coisas inspiradoras, você tem de aprender sozinho. Fique só, ouça música instrumental, aprenda a assistir mais, e perder mais do que ganhar.

Fique sem comer por um tempo, esqueça de seus amigos mais próximos e ande bastante. Você nunca vai fazer nada que preste se não tiver como hábito a caminhada, e se no percurso não atentar a todas as pessoas, as mínimas coisas. Se estiver frio, saia com uma malha fina. Ande sem guarda-chuva se chover, e isso tudo não é apenas pra fazer fita, mas pra provocar um incômodo consciente que aos poucos irrita a cabeça e te faz pensar.

Não sei mais o que te dizer, realmente, me alegra sua tentativa, mas suas súplicas me parecem exaustas, e me cansam um pouco também. Existe uma vertente que tem a criatividade como coisa genética. Se não pela hereditariedade, pode ser o sucesso profissional do seu pai que te atrapalha. Acho que a coisa só sai boa quando é uma das últimas que você acredita fazer bem. Você ainda vai poder ser dono de fábrica, executivo de empresa, de qualquer empresa, realmente não sei. Se quiser mesmo voltar a escrever essas coisas que me manda, espere sua cabeça pedir.

Grato.

21.9.05

Pesco Há Tanto Tempo

Dizem não ser bom ganhar o peixe
Pesco há tanto tempo
Sou mais peixe do que gente
Quando volto, tenho medo
Pesco há tanto tempo
Que hoje já nem me gabo pelo tamanho
Do peixe que deixa o profundo oceano
Se debatendo, barco a dentro
Estou sozinho no barco
Exímio pescador aventureiro
E nem me dou pelo que faço
Pesco há tanto tempo
Já tive cações nas mãos
Mas nada como, cansado, ter-te no peito
Pesco há tanto tempo
Repetindo comigo a mesma canção.

(Thiago Cunha)

16.9.05

Mundos

Meus devaneios aprimoram-se com o cansaço
Estico a vontade de dormir até ao ponto
De, tão mais cochilando do que acordado,
Fazer da faísca do que penso o começo do sonho

E de pensar em natureza e pessoas nas ruas
Vivo o infinito de um mundo meu
Um pequeno bando de pícaros ateus
Vagando entre espaços verde púrpura

Acordo, uma vez ilusão
Posto-me mudo por curto momento
Torço (até rezo) também em silêncio
Pra logo vir sonho em outra versão

Nao sei como pro mundo todo dia regresso
Se quando abro os olhos ou de noite, quando os fecho
Só sei que são meus, de pessoas e ruas
E um tanto mais felizes quando pícaros verde púrpura.

(Thiago Cunha)

10.9.05

Vou-me embora pra Pasárgada



Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro bravo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito a beira do rio
Mando chamar a mãe-díágua.
Pra me contar histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóides à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
Lá sou amigo do rei
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

(Manuel Bandeira)

5.9.05

Não Chore

Não chore meu bem, vai passar
Mal você sabe o quão grave isso fica
E quanto pior, melhor ainda
Para seu pranto, aos poucos, secar

Não ligue pra isso, querida
Já foi, talvez se repita
A tristeza só fica
Até outra chegar

Me dê sua mão
Vem decretar esse dia domingo
Aprender sobre as coisas que não são
Com seu vagabundo assumido

Trânsfugas, essas coisas
De ventrículo pra ventrículo
Entre as esquinas do coração

Existem tantos caminhos
Largue minha mão
Você já está sorrindo, não chora
Meu bem, a emoção é o pensar arrependido.

(Thiago Cunha)

4.9.05

Outra Noite


Outra noite
Outro sono
Como se eu sonhasse o sonho
De outro dono
Outro fumo, uma outra cinza
Outra manhã

Mordo a fruta
Outro é o sumo
Ando pela mesma casa
Com outro prumo

Outra sombra, outono
Chuva temporã
Será que já não vi
De modo impessoal
E em tempo diferente
Um dia estranhamente igual

Dias iguais-- avareza de Deus
Passando indiferentes
Por estranhos olhos meus
Outros olhos
No teu rosto
Vou falar teu nome
E já teu nome é outro

Outra bruma
Sombra de outro sonho, alguém
Na manhã de junho
Outono, outubro, além.

(Chico Buarque)

Menina Que Bebia

Conhecia uma menina que bebia.
Mal se dava conta, quando alterada, de linearidade de seus dentes, molares e caninos, desperdiçada em todos os sorrisos inadimplentes.

Conhecia uma menina sorridente, que beijava todos os amigos, com preciosos beijos no canto da boca.

Sua conduta simpática e espartana nos impedia de cogitar qualquer outra coisa. A menina, de caipirinha, de chopp dos outros, de marguerita, era tão minha quanto de todos, sorrindo pra uma câmera que nunca estava lá.

Vestia-se de preto, falava de funk a Chico, sem ordem, sem lógica. Assistia cinema mudo, beijava de boca inteira moleques inteligentes e feios, bonitos e burros, tudo junto, suprida da própria certeza.

Sorria cínica, amava torta, a menina que bebia sóbria, quase mais que todos os moleques. Tava na moda deixar o cabelo crescer, manter a barba meticulosamente mal feita e sustentar um ar de sério, mas ela não sabia de moda, ela não sabia de nada (apesar de acreditar que ela já sabia de tudo).

Até que eu, “sortudo”, a beijei. Também de boca cheia, também de mão na cintura e outros pensamentos presos na cabeça, mas convicto de que era uma menina bêbada.

(Thiago Cunha)

Eu Te Amo

Existem um milhão de sorrisos no mundo. Cabelos, idênticos, esvoaçando pelas janelas do carro. Quantas pessoas, por genética ou treino, sorriem desse jeito, como você...Existem milhares de pessoas, espalhadas nas varandas, quartos e ante-salas, e palavras a serem ditas por cada uma delas, em um milhão de línguas diferentes. Existe também o silêncio entre as palavras, e os infinitos modos de se ficar quieto. Existem frases fáceis, de pouco verbos e muitos substantivos, e as difíceis, que dão vontade de ligar e reivindicar uma tradução logo depois de ter batido o telefone.
Muitas pessoas, agora, estão pensando em outras, num silêncio que nunca vai ser transcrito em nenhum dialeto, em qualquer tempo, no mundo inteiro. Pessoas que gostam de outras pessoas, tanta gente e escolha espalhada no tempo. Muitas delas, em algum aspecto, e isso talvez seja umas das coisas que ninguém sabe explicar, se parecerão com você. Sua boca, o modo que você olha e como faz tudo ficar engraçado, enfim, existem pessoas com seus defeitos e virtudes, apenas não estão todos juntos.
Isso me chateou por um tempo, essa possibilidade infinita de se sentir curioso por outra combinação de feições e trejeitos. Sempre que te via acionava-se em mim um apurador de tempo, projetando em gráficos geométricos e com legenda a chance de que poderíamos ser felizes para sempre. Ficava aflito, por mim e por você, com essa mania de pensar demais, inventar e fermentar problemas. Mas você então deu um sorriso, virou um pouco o rosto, afinou a voz e disse: “Quê! ?”, e tudo que passava pela minha cabeça teve que esperar.
Todo dia com você é gozar da esperança de algo que, de tão certo, parece não necessitar de torcida. Mas mesmo assim te olho, e as lágrimas que de mim nunca conseguem sair regam na alma essa ponta latejante de vontade. A vontade de querer estar com você e poder conversar sobre as coisas banais que eu insisto em dar importância, olhar para seus olhos e assistir você zombando de mim quietinha, com a maior paciência.
Uma coisa que eu tinha muito era paciência, deixar as coisas correrem ou simplesmente interceptá-las, deixando que o tempo depurasse qualquer possível resquício de lembrança. E eu queria te dizer isso à muito tempo: “Eu não tenho medo do tempo com você!” Fazem meses que ele só serve pra medir a saudade que me dá quando estamos separados, e quão boas são as horas em que estamos juntos. Existe um milhão de maças no mundo e talvez eu não possa mesmo fazer de nada o que eu penso ou quero uma verdade eterna. Só queria lhe dizer que, na minha cabeça dura, você é a pessoa mais importante que já me apareceu, uma maçã que me faz querer chorar, que me entende e que consegue se impor às minhas idiotices (mesmo comigo não arredando o pé). Eu, como ninguém, sei que o tempo pode mudar muita coisa, e talvez esse seja o medo que eu tenha. Não quero que mude! O que eu posso dizer, com todo meu coração e a minha cabeça, é que eu te amo, de todos os jeitos possíveis.

(Thiago Cunha)

Para Uma Menina Com Uma Flor




Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque que você acorda tarde e gosta de brigadeiro: quero dizer o doce feito com leite condensado.
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque quando você sonha que eu estou passando você p/ trás, transfere a sua ddc para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo p/ cima, como uma santa moderna e anda lento e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.
E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pagem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz; e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim pra ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente sozinha e perdida no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seu lhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E pôr que você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que eu estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.
E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim pôr ela, a mão no queixo, a perna cruzada triste, e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita p/ você, " Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, se por acaso você não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando aquele pedaço em que digo que você "tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois."
E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonhas - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão presciente de Guinard; e o meu coração põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que já tive, e você é filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinalda; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobre tudo porque você é uma menina com uma flor.


(Vinícius de Moraes)

Noite Escura - 2002

E cai sob o crepúsculo
Uma noite tão imperdoavelmente escura

As mães põem-se a acolher seus filhos mais cedo às camas
Apesar de que fariam por eles mesmos
Já que o silêncio dominara todas as suas risadas em volta do campo

E nessa noite ninguém ligou a televisão
Nem se amou sob o pretexto do frio
Simplesmente apreciaram, acompanhados de chá
Aquela escuridão atulhada de sentimentos

Que pela falta de barulho se indefinia no pensar
Tornando o sigilo ainda maior
Trazendo as mãos a se encontrarem e apertarem-se forte
E as crianças dormirem plenas, um cochilo profundo sem sonho.

(Thiago Cunha)

As Boas Coisas da Vida


Uma revista mais ou menos fívola pediu a várias pessoas para dizer as "dez coisas que fazem a vida valer a pena". Sem pensar demasiado, fez essa pequena lista:
- Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrfa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.
- Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de umas cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.
- Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para seu lado e, de repente, dar um chute perfeito- e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro.
- Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.
- Aquele momento que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade- ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.
- Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustação da carne - a mulher que não te deu e não te dá. essa amaldiçoada.
- Viajar, partir...
- Voltar.
- Quando se vive na Europa, voltar para Paris; qaundo se vive no Brasil, voltar para o Rio.
- Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte - o assim chamado descanso eterno.

(Rubem Braga)

3.9.05

Amor Perfeito - 2001

Se quiser ser feliz
Amando alguém senão você
Se desprenda, primeiro, de qualquer sentimento

Faça correr impassível o pensamento
Que, quando ativo, te engana
E faz sublime algo que tal rótulo não merece
Algo que insiste em perpetuar em frívolas novelas
E que, ralo, é regido não pelos astros ou flechas
Mas pela epiderme

Foi o que fiz, e te digo: Foi bom!
Nunca chorei e pude morrer tantas vezes
Pequenas mortes de satisfação

E suor, e champagne, e tudo que isso adiciona
E tranqüilidade, e mentira
Milhões de olhares a tona de minha satisfação
Eu sou sapo, eternamente são
E todas minhas Cinderelas estão entorpecidas.

(Thiago Cunha)

Garota, Menina

Garotinha de conversas inflamadas no computador, o que fazes agora na sua labuta incansável e cheia de histórias? O que fazem suas histórias que tanto enfeitam seus dias, ecoam e somam à outros, o que fazem com você? Eu ainda sofro de hipocondria ou grave doença cardíaca, acho um milhão de coisas bobas, ainda tenho dificuldade em gargalhar e dormir e sempre acabo gastando demais com bebida.
Garota alegre e de vida fácil, onde está você agora pra amenizar a incógnita de tudo que eu faço, você entre elas a que menos me trazia dúvidas. Onde está você? Quero te explicar um filme, quero te encher de argumentos - ou de dúvidas, já que é de meu feitio apenas omitir, sempre -, quero pegar na sua mão e te ver sorrindo, como que pegar na mão fosse o mais sublime possível, entre a fila do cinema e o acento apertado.
Quero passar levemente a mão entre seus cabelos enquanto chora por uma tragédia qualquer, pra você tudo é tragédia, peça motriz de tragédias e amores fulminantes a sua cabecinha. Quero você garota, menina, que é como você gosta de ser chamada e para cujo título tem todos os méritos. Te quero como remédio.

(Thiago Cunha)