31.8.05

Tadinha da Zuleide

5:30 da tarde, Zuleide entra no ônibus sem nenhuma sacola. Era uma das únicas que não carregava nada, bolsa, sacola, pacote, pochete, carteira, nada, excetuando o cartão vale-transporte que tinha acabado de conseguir e que mostrava com orgulho ao cobrador: “-Tem que encostar ele aqui ó”. Zuleide, sem perder a compostura, encostou o cartão junto à máquina até escutar um apito. Pronto, que susto, saldo: 45 reais. Ela tinha esperado meses para isso e agora que estava de folga pôde fazê-lo, juntar todo o dinheirinho guardado e encher aquele cartão de créditos. 45 reais, parecia um sonho. Aquele era o segundo ônibus de Zuleide para casa e por isso, antes dos 45 reais piscarem no visor, três zeros a assustaram: 0,00. “Mas que engraçado”. Por um instante Zuleide esquecera de todas as explicações da atendente e das suas horas de tolerância entre um ônibus e outro, passando os próximos minutos gozando da sorte de terem esquecido de cobrar sua viagem.
Zuleide era moça de baixa estatura, de quadril largo porém visivelmente mal nutrida. Comia pastel e bebia cerveja quase todos os dias, talvez uma explicação para sua mulatice desbotada, impossível de definir se as manchas eram as partes escuras ou claras, tamanha imperfeição e variedade das cores. As dobras do pescoço, por exemplo, eram escuras, enquanto sua palma da mão era clara, estendendo sua tonalidade pelo antebraço até tornar-se bege na altura do cotovelo. Sua face e ombros, talvez ainda pelo pastel e a cerveja, eram cobertos de pintas. Algumas protuberantes, gordas pintas penduradas em sua pele por minúsculos apêndices, como se dela estivessem se desgrudando.
O ônibus naquele horário estava lotado, mas Zuleide já estava acostumada, ainda mais hoje, sem nenhuma sacola e toda cheia de si mesma. Gostava dos assentos do fundo, onde dava para sentir cócegas na barriga, e não demorou nem um minuto para abrir caminho entre todas as cinturas, coxas, peitos e bundas, e chegar até lá. Durante o curto percurso parecia não ser a mesma pessoa, quem via de fora nunca iria notar – seus olhos eram os mesmos, sua expressão triste também -, mas por dentro daquele corpo diminuto (daquela cabeça desproporcionadamente grande) ocorria uma explosão, figurada apenas pelos movimentos curtos de seus membros ossosos. Seu semblante permanecia intacto, Zuleide mantinha sua cara de invisível, mesmo com toda a nefasta alegria que sentia e as risadinhas presas entre os pensamentos.
“ Quer sentar?”- um homem gordo suando às bicas a perguntou. Ela, depois de jogar um olhar para todos os que pudessem ter escutado tão oportuna oferta, disse sim. Uma mulher sentada no banco ao lado indignou-se e parou o assunto religioso com a amiga para ressaltar que o coitado do homem é que deveria estar sentado, mas nisso ele já estava de pé e Zuleide quase toda acomodada.
A doméstica então aprumou-se no plástico duro e reparou muito simpaticamente no homem que havia lhe cedido o lugar, até que ele desceu, e seu entretenimento passou a ser o de apreciar suas formas crescerem no espelho olho-de-peixe. Tadinha da Zuleide...

(Thiago Cunha)

1 comment:

Anonymous said...

bonitinho este texto. gostei mas eu nao sei o que eh um espelho rabo de peixe. eu jah andei de onibus e nunca vi espelho. mas nos filmes brasileiros sempre tem um espelho de supermercado mesmo. será este?
mas olha, ela tem quadril largo, vc acha que em plenos anos 2k ela iria gostar de apreciar 42 virar 44? as gurias da novela, das seis às oito, sao todas bem magrinhas. mantendo os braços finos.
o ossosos vai ficar na minha cabeça. tadinha da zuleide.