31.8.05

Mosca

Havia dezenas de passarinhos sobrevoando a varanda do meu apartamento aquele sábado. Eu, bebendo um vinho barato e tentando presenciar algo interessante nas janelas dos outros prédios, demorei para perceber a presença de uma mosca no parapeito. Bichinho que instantaneamente foi digno de toda minha consideração.
Onde já se viu? Arriscar suas poucas horas de vida – não sei se ela era das espécies que só vivem 24 horas – naquela “barra pesada”. Ficava estática, esfregando as patas umas nas outras. Tão calma que até a mim ignorava. Eu, humano de vivência e cérebro avantajado.
Minhas tentativas de aproximação eram ridiculamente fáceis, o que deixava sem propósito qualquer ensaio de homicídio. Ela era a Gandhi das moscas. Pássaros, humanos, nada a abalara, seus olhos já eram arregalados de nascença. Talvez já tivesse amado, tivesse provado seu valor e naqueles minutos – eternos minutos – refletisse. Talvez ela fosse superior a tudo isso, talvez vinte e quatro horas fossem um martírio e nada mais valesse a pena a não ser vivenciar a chance de encurtar sua via-crúcis. Fitou-me pela última vez e partiu, superior entre os pardais. Ainda não sei se era recém-nascida ou idosa, hedonista convicta ou conservadora perdida, sei que era uma mosca e que com certeza ria de mim.

(Thiago Cunha)

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